No início de maio, a americana Emily Whitehead, de 16 anos, celebrou nas redes sociais dez anos livre da leucemia. Todos os anos, o mundo da oncologia aguarda esta data.
No ano 1, ela foi recebida pelo presidente americano Barack Obama na Casa Branca. Uma década depois, estamos surpresos com a sua saúde.
Aos 6 anos, Emily estava no fim de vida após várias tentativas de tratamento com quimioterapias diferentes e sem resultados. Foi, então, a primeira paciente da história a receber uma nova terapia, ainda experimental e bastante arriscada: o CAR-T cell (do inglês Chymeric Antigen Receptor T-cell).
As células CAR-T são um medicamento vivo e personalizado. Baseiam-se em linfócitos T (um tipo de célula de defesa) com receptores específicos para destruir células tumorais. Por enquanto, há evidências de benefícios em situações como leucemia linfoide aguda, linfoma não-Hodgkin refratário e mieloma múltiplo.
Diferentemente de um remédio que se compra pronto, as células CAR-T são fabricadas para o paciente a partir das células dele mesmo. Retiramos o sangue, selecionamos os linfócitos T, congelamos, levamos ao laboratório e modificamos seu DNA inserindo novas sequências genômicas por técnicas modernas.
O processo leva essas células a produzirem uma proteína diferente, metade dela, metade nova (daí o termo “quimera”). Esses linfócitos têm a capacidade de reconhecer e combater as células tumorais do paciente com afinidade e potência superiores às suas versões naturais.
Ao expandir essa população de linfócitos T modificados, temos nosso medicamento vivo, que é infundido de volta naquele paciente. A produção leva de três a seis semanas. Se for preciso usar o mesmo método em outro paciente, teremos que fazer tudo de novo. O tratamento é realmente individualizado.
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Enquanto aguarda, o paciente recebe quimioterapia para manter a doença sob controle. A aplicação em dose única das células CAR-T requer internação por duas semanas, monitoramento por mais quatro semanas, prevendo e tomando cuidados com efeitos colaterais das reações imunológicas.
Embora ainda seja aplicada em poucos tumores, essa terapia vem revolucionando o tratamento oncológico, trazendo esperança para pacientes já sem possibilidades. Não há o sucesso como o de Emily em 100% dos casos: a terapia pode falhar e, após meses ou anos, a doença retornar.
Muitos estudos clínicos estão testando essa abordagem para outros tipos de câncer, como melanoma avançado, glioblastoma (no cérebro) e tumores no pâncreas. Pesquisamos agora como produzir uma versão do tratamento que possa ser aplicado em vários pacientes com a mesma doença e já começamos a avaliar as células CAR-T como tratamento inicial em vez de usar só quando outras opções falharem.
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Trunfo científico, paradoxo econômico
As células CAR-T representam uma celebração da ciência por reunir resultados de estudos de diversos países ao longo de décadas, iniciados quando deciframos o genoma humano, depois o genoma de cada câncer e, em seguida, quais as moléculas mais importantes para o comportamento de cada tumor e como podemos inibi-las.
Nesse percurso, desvendamos a relação entre o câncer e o sistema imune e criamos técnicas de manipulação do genoma. Os testes clínicos com as CAR-T acertaram a dose e o momento de aplicação, além do controle de reações adversas da presença de linfócitos superativos.
Perceba que foram décadas colocando um tijolo sobre outro até construir esse tratamento.
Emily personaliza o sucesso coletivo. E, agora que a terapia está entre nós, vivemos um dilema: vamos conseguir usá-la amplamente? Vivemos o paradoxo de ter todo esse conhecimento e métodos sofisticados que entregam benefícios superando os riscos e, ao mesmo tempo, dificuldades para pagar por eles.
Sim, o tratamento custa caro, mais caro que todos os outros disponíveis para o câncer. Nos Estados Unidos, algo entre 300 mil e 400 mil dólares. E agora?
Eis um problema complexo que precisa de uma inteligência coletiva com foco único. É certo que, com o tempo, a competição entre os fabricantes e o amadurecimento do processo de produção reduzirão o preço.
É natural imaginarmos que o uso comece em ambientes com mais recursos e avance para ambientes com restrições ao longo dos anos. Falamos de um tratamento com início recente nos EUA e na Europa e que só agora estará disponível na América Latina.
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A CAR-T estreia na região pelo Brasil, primeiro no ambiente privado para, depois de um tempo, poder ser incorporada ao SUS.
O fato é que, durante o avanço científico, aprendemos a indicar melhor, a produzir melhor, a cuidar melhor, o que aprimora a relação custo-benefício nesse contexto. Como líderes e gestores na área da oncologia, incluindo hospitais, operadoras, farmacêuticas e outras empresas, temos de enfrentar o paradoxo de não conseguir pagar essa conta.
Rejeitar a tecnologia pelo preço é a atitude mais fácil e confortável, só que baseada numa falsa premissa.
Precisamos diminuir o desperdício na oncologia, tais como processos ineficientes pela fragmentação do cuidado, exames repetidos por falta de integração, medicamentos e procedimentos que não geram bem-estar ou funcionalidade, remuneração pelo volume mesmo sem qualidade ou até com dano ao paciente… Sem falar nos tumores evitáveis com prevenção e diagnóstico precoce.
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A conta do desperdício para a sociedade é seguramente maior do que a dos tratamentos inovadores. Por que aceitar conviver com a ineficiência e dizer que não há recursos para mais nada? Penso que, se temos alta tecnologia com benefício comprovado, capaz de salvar crianças que podem depois retornar décadas de trabalho produtivo para a sociedade, nosso papel é buscar meios de resolver o desperdício, de investir pesadamente em ciência (que sempre nos dá retorno) e aperfeiçoar a cadeia da saúde.
Emily foi tratada uma única vez com células CAR-T e a cada ano celebra com alegria sua vida produtiva, mas sofreu muito antes disso. Em breve, esse tratamento substituirá em dose única a soma de tudo que Emily passou antes, sem sucesso.
Focados nesse caminho, trocaremos ineficiência por ciência, e vamos equilibrar saúde e dinheiro.
CAR-T cell: quando a ciência desafia a ineficiência contra o câncer Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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