Quem não tem interesse em entender o cérebro? Como qualquer pessoa minimamente curiosa, Érika Freitas era fascinada pelo funcionamento do órgão mais complexo do corpo. Durante a graduação em Ciências Biológicas da Unicamp, ela fez uma iniciação científica sobre o desenvolvimento neurológico dentro do útero – e investigou como a desnutrição da mãe pode impactar o cérebro de um filhote.
Érika queria continuar nessa área durante o mestrado. Quando fez a proposta para seu orientador, com quem já tinha colaborado na iniciação científica durante anos, recebeu um alto e claro “não”. Ele preferiu orientar dois rapazes que nunca haviam trabalhado com ele. O motivo? Em suas palavras, “as mulheres tinham mania de fazer pausas para engravidar”.
A rejeição fez a Érika abandonar a neurologia e partir para a genética. Ela fez o mestrado com uma orientadora da faculdade de medicina da Unicamp. No laboratório, ela estudava as mutações por trás de malformações do crânio e face. Enquanto isso, no hospital, ela atendia pacientes e fazia aconselhamento genético.
Ela se interessou em estudar craniossinostose, que ocorre quando o crânio do feto é calcificado (ou seja, endurece) ainda no útero. O normal é que o bebê nasça com esses ossos ainda um pouco moles, para que a cabeça tenha flexibilidade para passar pelo canal vaginal e abra espaço para crescimento do cérebro durante o desenvolvimento. Érika sequenciava os genes para entender quais mutações estavam relacionadas a essa síndrome.
Essas malformações são doenças autossômicas dominantes, e geralmente são passadas hereditariamente. Se um dos pais carrega a mutação, o filho tem 50% de chances de herdar e desenvolver a doença. A pesquisadora lembra de quando atendeu um casal que já tinha um filho com malformação, e a mãe estava grávida novamente. Ao fazer o exame genético da família, ela descobriu que nenhum dos pais carregava o marcador para a doença, e que a mutação tinha surgido ao acaso no primeiro filho.
Em outras palavras, as chances do segundo filho ter malformação eram baixíssimas, e a gravidez acabou sendo bem mais tranquila do que a primeira. “Ver o rosto da pessoa quando recebe uma notícia dessas faz tudo valer a pena. Foi aí que eu vi o real valor daquilo que eu estava pesquisando”, diz ela.
Não é preciso sequenciar o genoma inteiro do paciente para identificar doenças raras. O nosso DNA possui 3 bilhões de pares de bases – as letrinhas A, T, C e G. Mas “apenas” 30 mil genes – o nome que se dá a uma longa sequência de letrinhas que codifica uma proteína. Um pedaço razoável do nosso material genético é feito de letrinhas que não formam genes operantes e não têm uma função clara. Os trechos funcionais, que são de grande interesse para a medicina, se chamam exoma.
A pesquisadora foca no exoma para estudar problemas no sistema reprodutor feminino, malformações de linha média, surdez e outras doenças. “Eu sempre continuo na genética, só vou mudando de doença”, diz Érika. Hoje, ela trabalha na Mendelics, uma empresa que faz diferentes testes genéticos que ajudam tanto no planejamento familiar quanto no diagnóstico de doenças. Se um bebê apresenta problemas na vocalização, por exemplo, é possível sequenciar os genes relacionados à audição e verificar se ele tem propensão à surdez.
Teste para a covid-19
Em 2020, Érika participou do desenvolvimento do primeiro teste de saliva para a covid-19 brasileiro, chamado RT-Lamp. O paciente cospe em um tubo e manda a amostra para análise no laboratório. O diagnóstico fica disponível em poucas horas. A técnica já era usada para detectar outros vírus, como o zika, mas ainda não havia sido aplicada para o Sars-Cov-2 no país.
Assim como o RT-PCR (considerado o padrão-ouro para o diagnóstico da covid-19) o RT-Lamp detecta se o coronavírus está no corpo naquele momento. Ele não sequencia o RNA inteiro do vírus, mas utiliza oito moléculas que se ligam a pedaços específicos do material genético do Sars-Cov-2.
Essas moléculas, chamadas primers, são compostas pela adenina, citosina, guanina e timina (o famoso ATGC das aulas de biologia). A lógica é a mesma: o A se liga ao T, e o C se liga ao G. Se eu fizer um primer com a sequência AAAGGG, ele vai procurar o TTTCCC na amostra. Os primers são feitos pensando em sequências bem características do Sars-Cov-2. Se todos os primers se ligarem à amostra, significa que o RNA do coronavírus está ali.
Hoje Érika é gerente executiva dos dois laboratórios da empresa – um direcionado aos testes de covid-19, e o outro que faz sequenciamento para o diagnóstico de doenças genéticas.
Érika Freitas usa genética para diagnosticar doenças raras (e covid-19 também) Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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