O hidrogênio já foi celebrado como o combustível do futuro. Passadas décadas de ensaios e promessas não realizadas, esse continua sendo o rótulo. Mas parece que desta vez, com uma confluência de tecnologia e pressa em razão da urgência gerada pelas mudanças climáticas, a coisa é para valer.
Nada poderia ser mais simples do que o hidrogênio. É o primeiro elemento da tabela periódica, todo ele produzido nos primeiros estágios pós-Big Bang, há 13,8 bilhões de anos. Cerca de 75% da massa do Universo é hidrogênio: átomos que têm um único próton em seu núcleo e um elétron solitário ao redor.
E eles são a usina de força das estrelas. No núcleo de cada uma, a pressão é tão grande que os átomos de hidrogênio vão grudando uns nos outros – fusão nuclear. Essa “colagem” de hidrogênio produz hélio (que tem dois prótons) e uma pequena parte da matéria original acaba convertida em energia. Por isso as estrelas brilham.
Fora das estrelas, o hidrogênio existe em sua forma molecular: o H2 (o casamento de dois átomos desse elemento criam a molécula de hidrogênio). E a energia que ela contém pode ser acessada de forma muito mais simples do que por meio da fusão nuclear.
Meramente romper as ligações químicas da molécula de hidrogênio já produz uma enorme quantidade de energia. Basta inserir oxigênio em meio às moléculas de H2. Elas se rompem para formar vapor d’água (H2O). E a energia liberada nós vemos na forma de fogo. Ao processo todo, dá-se o nome de combustão.
Por sinal, a má fama que o hidrogênio teve durante muito tempo vem desse fato, de o H2 entrar em combustão facilmente.
Em nossa infância tecnológica, no século 19, uma das principais utilidades do hidrogênio era para encher balões. Com seu peso molecular ultramodesto, ele é muito mais leve que o ar. A contrapartida é que é inflamável (por isso é melhor encher balões de festa com hélio, embora esse elemento seja bem menos disponível).
Na virada do século 19 para o 20, todo mundo considerava Alberto Santos-Dumont um maluco por misturar balões cheios de hidrogênio com um motor movido a gasolina (que produzia faíscas para a combustão) para realizar seus voos com dirigíveis.
Quando ele contornou a Torre Eiffel com um de seus inventos, em 1901, fez muito para dissipar parte desse medo. Em compensação, a imagem histórica mais associada ao hidrogênio é a tragédia do Hindenburg, o zeppelin alemão que se incendiou em pleno ar, em 6 de maio de 1937, matando 35 dos 97 ocupantes.
Hidrogênio é de fato perigoso. Em temperatura ambiente, ele existe na forma de um gás inodoro, transparente e (muito) inflamável. Daí que passamos o século seguinte explorando de forma indireta o poder do hidrogênio, queimando moléculas mais pesadas, mais manejáveis, que o contivessem em sua composição.
Carvão, petróleo e gás natural são respectivamente formas sólida, líquida e gasosa de hidrocarbonetos, que são moléculas feitas basicamente de hidrogênio sustentado por uma espinha de carbono. O carvão é pobre em hidrogênio; já petróleo e gás natural são ricos em hidrogênio. E a diferença se faz notar no processo de queima de cada um: gás natural e derivados de petróleo produzem bem mais energia.
O grande problema é que nessas moléculas, além do hidrogênio, tem um monte de carbono. Quando você adiciona oxigênio, na combustão, os principais subprodutos são monóxido de carbono (CO), um poluente barra-pesada, e o dióxido de carbono (CO2), um gás do efeito estufa, grande responsável pelo aquecimento global. Eis o nosso drama.
O ideal, então, é usar hidrogênio molecular puro para produzir energia. E é o que a humanidade tem feito há algumas décadas. A questão: é preciso produzir o hidrogênio antes, pois ele não é tipicamente encontrado na Terra em seu estado puro (leve demais, ele literalmente “vai embora”; sobe para a alta atmosfera, onde a radiação do Sol quebra a molécula e os átomos escapam para o espaço).
O truque mais barato é roubar o hidrogênio molecular puro de hidrocarbonetos. E de fato já existe um mercado para isso hoje no mundo, que movimenta cerca de US$ 150 bilhões por ano, produzindo 90 milhões de toneladas de H2.
O problema aí é que o processo é quase tão ruim quanto queimar direto petróleo, carvão e gás natural – o lixo que esse roubo produz é cheio de carbono inútil, vai para a atmosfera. Todo ano, emitimos mais de 800 milhões de toneladas de dióxido de carbono para fabricar H2. Então por que fazemos isso?
Em essência, porque o hidrogênio puro é essencial para continuarmos tendo o que comer. Ele é extraído e processado para a geração de amônia (NH3), que por sua vez é o principal componente dos fertilizantes artificiais usados em plantações do mundo todo.
A aquarela do H2
A boa notícia é que há modos e modos de se produzir hidrogênio, e a essa altura a forma de obtenção ajuda a rotulá-lo em diversos tipos, que os especialistas classificam com cores – ainda que o gás obtido não tenha cor alguma.
O hidrogênio preto, o marrom e o cinza são os “clássicos”: um processo conhecido como reforma de gás separa o hidrogênio de betume, carvão ou metano (principal componente do gás natural), emitindo um monte de carbono na atmosfera.
Uma versão 2.0 desse processo ganhou o nome de hidrogênio azul, e é basicamente a mesma coisa, com uma diferença importante: o fabricante adota um esquema para capturar e armazenar a maior parte do carbono emitido. Não é um processo perfeito, 10% a 20% dos gases do efeito estufa ainda vão parar na atmosfera, mas já é um avanço considerável.
Ainda usando hidrocarbonetos como fonte, temos o hidrogênio “sabor” turquesa. Pega-se o metano (CH4), esquenta-se (num processo conhecido como pirólise), a molécula se quebra, o hidrogênio é aproveitado. O que sobra é carbono sólido, que não vai para a atmosfera e pode ser utilizado em outras indústrias, como na fabricação de pneus.
E então chegamos ao santo graal da fabricação do hidrogênio: aquele que é feito a partir da eletrólise da água. Isso mesmo, de H2O. Aplica-se uma corrente elétrica à água, as moléculas são quebradas, retiramos o hidrogênio.
O subproduto desse processo é o oxigênio, que pode ir à vontade para a atmosfera. Quando esse hidrogênio for convertido em energia, o que sobra é H2O – temos a água de volta. Lindo. Um ciclo completo, sem carbono para jogar fora, estocar ou reutilizar. Esse é o “hidrogênio verde”.
Uma olhada superficial por sobre esse processo pode ter um certo sabor de almoço grátis ou, para usar um termo mais nerd, de moto-perpétuo. É um esquema perfeito, que se autossustenta para todo o sempre?
Claro que não. Você precisa gastar um monte de energia na forma de eletricidade para que ele aconteça – ou seja, a quantidade de energia a ser obtida com o H2 é sempre menor do que aquela usada para criar o H2.
A arte de estocar vento
Que vantagem Maria leva, então? Muita. Porque essa solução traz à tona outra característica fundamental do hidrogênio: ele pode servir como um armazenador de energia. Se você usa um monte de energia solar para produzir H2, e depois usa esse H2 como combustível para um caminhão, por exemplo, fica como se o caminhão fosse movido a energia solar. Legal.
O caráter armazenador do hidrogênio também aparece como solução para intermitência das fontes solar e eólica. E nos dias em que não há vento? E durante a noite, quando não há luz solar? A energia armazenada no hidrogênio pode ser reconvertida mais tarde em eletricidade. Com perdas, claro. Mas ainda assim com grande facilidade de armazenamento e transporte. Afinal, já estamos acostumados a prender e distribuir gás natural. Hidrogênio não seria muito diferente.
Em suma: sabe o lance de “estocar vento”? Então. Hidrogênio estoca vento. E energia solar também. Com ele, um país que produza muita energia eólica ou solar poderia exportá-la na forma de hidrogênio. Um sopro de vento no Rio Grande do Norte poderia acender uma lâmpada em Lisboa meses depois.
Os usos mais promissores
Esse admirável futuro “hidrogênico” só poderá se estabelecer, contudo, se houver iniciativas que deem origem a fontes estáveis e limpas do gás, algo que ainda não acontece apenas pelas forças do mercado (que preferem produzir as versões “cinza”, mais baratas, para usos em que não há alternativa, como o pequeno mercado de combustível de foguetes e a grande demanda no ramo de fertilizantes).
Mas a crise climática e empurrões dos governos estão mudando esse cenário. Atualmente, há o Conselho do Hidrogênio, um consórcio internacional focado em parir essa nova era verde.
Movido a parcerias público-privadas (que devem mover US$ 500 bilhões até 2030), ele atualmente toca cerca de 350 projetos de larga escala para desenvolver produção e distribuição limpa de hidrogênio e promover a substituição de combustíveis fósseis por ele nas mais variadas indústrias.
A União Europeia, em particular, tem fomentado demais a ideia. Sua estratégia para o hidrogênio descreve: “De 2030 em diante e até 2050, tecnologias de hidrogênio renovável devem atingir maturidade e ser aplicadas em larga escala para atingir todos os setores difíceis de descarbonizar”. Os governos estão dando o empurrão inicial, mas depois disso o mercado tem o potencial para fazer o resto.
E quais são os principais setores que podem trocar os combustíveis fósseis pelo hidrogênio? Transporte é um dos principais candidatos. Mas não na forma dos automóveis.
Vinte a trinta anos atrás, havia uma expectativa de que talvez o petróleo pudesse ser trocado por hidrogênio nos carros de passeio, para combustão direta ou talvez nas chamadas células a combustível (fuel cells), dispositivos que consistem em uma espécie de bateria que reúne hidrogênio e oxigênio para gerar eletricidade, tendo como único subproduto a água.
Ainda há quem aposte nisso, como a gigante automobilística japonesa Toyota, que investe na tecnologia desde os anos 1990 e espera aumentar a frota de carros movidos a células a combustível para 200 mil em 2025. Já o governo chinês diz querer ter 1 milhão desses veículos em circulação no país até 2030. Mas são poucos os que, nesse segmento, estão fazendo esse mesmo movimento.
As baterias de íon-lítio, usadas atualmente nos carros elétricos, tomaram de assalto o mercado. Hoje elas se oferecem como a melhor solução para transporte pessoal urbano, recarregadas plugadas na rede elétrica durante os momentos em que o carro não está em uso.
O jogo muda, contudo, se falamos de transporte de carga e de viagens a longa distância. A empresa de logística alemã DHL fez as contas e descobriu que veículos de carga pesada movidos a bateria só são a melhor opção quando a viagem é inferior a 200 km.
Mais do que isso, e uma combinação de demora no tempo de recarga e baixa autonomia começa a jogar contra as baterias de íon-lítio – recarregar um caminhão é uma operação que levaria horas, mesmo com as melhores tecnologias de hoje; reabastecer com hidrogênio toma só alguns minutos. Faz toda a diferença na logística infernal dos fretes, com seus prazos apertados.
Então é uma boa aposta que os caminhões acabem pulando a tecnologia das baterias de lítio e saltem diretamente do diesel para o hidrogênio. Isso tornaria a logística de distribuição e reabastecimento muito mais simples. É relativamente fácil adaptar um posto de gasolina para lidar com hidrogênio, e o transporte também é bem dominado (não precisa ser muito diferente da infraestrutura que leva hoje gás natural veicular aos postos).
A ideia também se aplica ao transporte sobre trilhos. Com efeito, a empresa francesa Alston, maior fabricante de trens fora da China, já opera veículos férreos movidos a hidrogênio na Alemanha. É uma mudança radical se comparada aos equivalentes movidos a diesel: sem poluição, pouco ruído e viagens tão suaves quanto a de trens elétricos. A empresa já aposta que muitos dos 5 mil trens a diesel que terão de ser aposentados na Europa até 2035 poderiam ser substituídos de forma economicamente razoável por equivalentes movidos a hidrogênio.
Na aviação há um debate em andamento. Aviões elétricos para centenas de passageiros estão fora de cogitação – as baterias são pesadas demais. Então o H2 seria a grande pedida limpa. Sua densidade de energia é três vezes maior por massa que a do querosene, o combustível das aeronaves. Levar um quilo de hidrogênio nos tanques equivale a carregar três quilos de querosene.
Que maravilha, né? Mas calma lá. Querosene, em temperatura ambiente, é líquido. Bem denso. Fácil de armazenar. Hidrogênio é gás. Nas mesmas condições, um quilo de hidrogênio ocupa uma área bem maior do que sua massa equivalente em querosene. No espaço limitado de um avião, isso faz diferença.
Na indústria espacial, as vantagens energéticas do hidrogênio já são amplamente utilizadas. O H2 é convertido em líquido ao ser resfriado em temperaturas criogênicas (-253 °C). Isso amplia a densidade da coisa – você passa a ter muito mais energia por centímetro cúbico. Mas tem uma diferença: a situação não perdura por muito tempo após o abastecimento do foguete. Queima-se tudo de uma vez.
Na aviação comercial, não. Para manter o hidrogênio líquido refrigerado a -253 °C por horas e horas, você precisa de tanques pesados e grandes – quatro vezes maiores que os de hoje. Isso tira espaço que iria para os passageiros (um quarto dos assentos, estima-se). E com menos pagantes a bordo os voos tendem a ser comercialmente inviáveis.
Ou seja, temos aqui uma lacuna tecnológica. Será preciso dar um jeito de pressurizar enormemente o hidrogênio gás para adensá-lo num tanque de avião em temperatura ambiente, ou encontrar alguma alternativa, como o uso de amônia fabricada com hidrogênio limpo como combustível.
O setor aeroespacial no momento está dividido. A europeia Airbus está mergulhando de cabeça no hidrogênio e disse em setembro ter um plano para passar a mover aviões com ele em 2035. Já a americana Boeing segue conservadora.
O futuro
Seja como for, o hidrogênio verde tem um potencial enorme. Espera-se que a expansão dessa indústria vá cortar até 10% das emissões de gases do efeito estufa até 2050, gerando mercados de centenas de bilhões de dólares.
É a medida exata do que podemos esperar dele – significativa, transformadora, mas longe de uma panaceia.
Para além dos impactos em transporte e mesmo nas aplicações atuais, como a fabricação de fertilizantes, o hidrogênio poderá se expandir por segmentos insuspeitos, como o aquecimento doméstico em países frios.
É sabido que sistemas puramente elétricos são mais satisfatórios, mas, de novo, adaptar caldeiras pré-existentes de casas movidas a gás natural para lidarem com hidrogênio pode ser mais simples, prático e rápido do que instalar um novo sistema elétrico.
Essa é uma das vantagens importantes do hidrogênio nessa transição para uma civilização neutra em carbono – ele permite o reaproveitamento de infraestrutura existente e consegue preservar o semblante de muitas estruturas econômicas existentes, meramente substituindo combustíveis fósseis por uma alternativa limpa.
Mas, como já dizia o tio Ben para Peter Parker, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Hidrogênio continua sendo o mesmo gás altamente inflamável que causou a tragédia do Hindenburg em 1937. Teremos de aprender a lidar com ele e, em alguns casos, reconhecer que os riscos talvez não compensem os ganhos.
É o que temos para hoje – ao menos até que consigamos produzir energia abundante e limpa por meio da fusão nuclear, emulando aqui na Terra de forma eficiente e segura o uso que as estrelas dão ao bom e velho hidrogênio. Mas essa é outra história.
Hidrogênio: as perspectivas reais para o mais limpo dos combustíveis Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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