Em junho deste ano, o cantor canadense Justin Bieber, de 28 anos, trouxe à tona uma doença que vivia nas sombras e parecia relegada ao público mais velho.
Após anunciar uma pausa na turnê, ele revelou que tinha sido diagnosticado com a síndrome de Ramsay Hunt, uma versão do herpes-zóster marcada pelo ataque da infecção aos nervos da face.
Parecia sério: em vídeo postado no Instagram, Bieber mostrou que estava com o início de uma paralisia facial e se afastaria dos palcos por tempo indeterminado.
Fez bem: a síndrome, que é mais rara e desencadeada pelo vírus varicela-zóster, antes adormecido no corpo, pode gerar comprometimentos só resolvidos com cirurgia e sessões com o fonoaudiólogo.
Aos 62 anos, a servidora pública Rosa Aurea, de Teresina, também sentiu um baque na rotina ao apresentar a manifestação clássica e usual do herpes-zóster.
Tudo começou com estranhas dores, como se fossem pontadas, na parte de trás do tronco. Depois de dois dias de bastante incômodo, ela percebeu que havia bolhas no lugar do desconforto.
Com esses sintomas, foi a uma dermatologista, que logo cravou: o vírus da varicela, aquele mesmo que causa catapora na infância, reapareceu.
Foram prescritos remédios, incluindo antivirais, e a orientação de se isolar da família. A piauiense conta que foram dias difíceis, sem sair de casa e com muita dor, passados sozinha dentro de um quarto.
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Bieber, 28 anos. Rosa, 62. Ambos sofreram com uma doença capaz de acometer boa parte da população. Basta ter tido catapora uma vez na vida, geralmente quando pequeno. E encarar uma queda na imunidade tempos depois.
“Da primeira vez que o vírus varicela-zóster entra no corpo, como o sistema imunológico ainda não o conhece, ele consegue se multiplicar de forma disseminada, gerando manifestações na pele do tronco, dos membros e da face”, explica o médico Alexandre Naime, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). É a catapora.
“Só que, embora contido pelo organismo, o vírus não é extinto, e fica latente dentro de gânglios nervosos. Décadas depois, quando há uma baixa na imunidade, ele acorda e se multiplica pelo caminho dos nervos, num processo que provoca bolhas na pele e, devido à inflamação do nervo, muita dor”, descreve. Eis o herpes-zóster, também chamado por aí de cobreiro.
No caso de Bieber, já diagnosticado com problemas de saúde que podem interferir no sistema imune, a rotina intensa de shows e poucas horas de sono foram um golpe para o corpo. Rosa, por sua vez, penou com problemas familiares e emocionais.
Em comum, o vírus se aproveitou das brechas nas defesas e deu o bote! Não importa a idade, como se vê.
O zóster ganhou a boca do povo durante a pandemia de Covid-19: foi registrado aumento no número de casos e notícias falsas chegaram a dizer que a vacina contra o coronavírus despertaria o varicela, o que nunca foi provado.
Tudo leva a crer que a alta carga de estresse dos últimos anos pesou para o sistema imune, e a doença pôde sair do esconderijo.
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O varicela-zóster é antiquíssimo. Especialistas afirmam que ele tem mais ou menos o mesmo genoma há 2 milhões de anos — ou seja, já infectava australopitecos!
Foi esse vírus que deu nome a toda a família dos causadores de herpes (herpesviridae). Na Grécia antiga, se imaginava que as lesões do zóster, geralmente no formato de uma faixa apenas de um lado do corpo, eram provocadas pela passagem de uma cobra ou um lagarto pela pele, e que as secreções do animal geravam as bolhas.
Daí o termo herpes vir de herpein, que em grego significa “aquilo que rasteja”, “se alatra”, e era muito usado para designar esses animais.
Ainda hoje, décadas após o isolamento e a descrição do vírus culpado, paira no imaginário popular que bichos como lagartixa “dão cobreiro” — o que não procede.
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A latência, ou seja, o fato de o patógeno não ir embora totalmente do organismo após a primeira infecção, é uma característica comum a todos os vírus da família herpes, incluindo os responsáveis pelo herpes simples, que afeta os lábios, e o genital.
Mas o zóster é um bicho mais perigoso. Enquanto 99% da população contrai o vírus do herpes simples também na infância, muitas vezes sem nunca desenvolver lesões, o vírus da varicela raramente passa incólume e desata a catapora logo de cara — felizmente, temos vacina para evitar isso destinada às crianças.
E, pior, o vírus pode se reativar e detonar bolhas, formigamento, coceira e dores, até mais de uma vez, agora na forma de zóster.
A doença em si não. Se alguém que nunca se infectou com o vírus varicela-zóster (e não se vacinou) entrar em contato com as lesões ou os objetos de uma pessoa doente, ela pode desenvolver catapora, não zóster. Lembrando que o herpes-zóster é uma recidiva do vírus, uma segunda manifestação dele, nunca a primeira. E esse despertar não depende de fatores externos, apenas de uma queda na própria imunidade. Mesmo assim, o ideal é que pessoas com zóster se isolem para evitar a dispersão do patógeno.
Mesmo com esse risco pairando pelo corpo, desenvolver herpes-zóster não parecia ser algo tão corriqueiro quanto se vê hoje. E algumas pesquisas apuram a relação dessa alta de casos com estes tempos de Covid-19.
Um estudo da Universidade Estadual de Montes Claros, em Minas Gerais, apontou que a incidência da doença aumentou mais de 35% no Brasil no início da pandemia. Entre 2017 e 2019, nosso país apresentava pouco mais de 30 casos de zóster por milhão de habitantes. Já em 2020, com a crise da Covid em curso, essa média subiu para pouco mais de 40 casos.
Em outro estudo, que analisou dados de cerca de 2 milhões de pessoas — quase 400 mil diagnosticadas com Covid-19 e 1,6 milhão sem contato com o coronavírus —, pesquisadores da Bélgica e dos Estados Unidos concluíram que o risco de apresentar zóster é 15% maior em pessoas com mais de 50 anos que tiveram um caso leve de Covid-19 em comparação com aquelas que não contraíram o vírus Sars-CoV-2. Segundo a mesma análise, publicada no periódico Open Forum Infectious Diseases, se a doença tiver levado a uma internação, esse risco sobe para 21%.
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Mas, afinal, o que uma coisa tem a ver com a outra, ou melhor, o que um vírus tem a ver com o outro?
“O coronavírus, que infectou amplamente a sociedade, tem também um caráter imunossupressor considerável, que pode perdurar por um tempo após o pico da doença. Além disso, fatores como estresse, medo e insegurança, que predominaram durante essa fase, podem ter contribuído para a baixa imunidade, cenário perfeito para a reativação do vírus da varicela”, raciocina o virologista Fernando Spilki, professor da Universidade Feevale, em Canoas, no Rio Grande do Sul.
O especialista chama a atenção, porém, para um detalhe: esse aumento de incidência no zóster não é um processo que começou nos últimos anos, e sim nas últimas décadas.
A ciência ainda não cravou uma razão para isso, mas surgiram duas hipóteses: a primeira, e mais óbvia, é o aumento da expectativa de vida. “Com o avançar da idade, e o envelhecimento do próprio sistema imune, há maior chance de termos a recidiva do vírus”, diz Spilki.
A segunda teoria é mais complexa: de acordo com Spilki, o crescimento dos episódios de zóster pode estar intrincado com questões típicas da nossa sociedade moderna e globalizada.
“Estamos cada vez mais expostos a fatores imunossupressores. Desde intoxicantes ambientais, que vão de pesticidas a substâncias químicas que chegam a nós via alimentação e água, até mesmo medicações. Muitas doenças crônicas autoimunes, por exemplo, exigem uso regular de remédios que reduzem a ação do sistema imunológico”, expõe o virologista.
“Em que medida essas intervenções estão associadas ao maior índice de herpes-zóster é o que se investiga agora”, conclui.
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Essa linha de raciocínio também pode ajudar a entender outra tendência mais recente: o aumento na incidência da infecção em pessoas mais jovens.
“Antes ela acometia predominantemente os idosos, e hoje passa a ser cada vez mais comum em indivíduos de meia-idade”, nota Spilki.
Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, a taxa de zóster em americanos com menos de 50 anos vem aumentando desde 1998, e esse público já representa um terço dos casos totais. Nesse contexto, crescem os relatos de aparecimento da doença após traumas emocionais, inclusive em crianças.
Uma boa forma de evitar males do gênero é vacinar os pequenos contra a catapora, conforme prevê o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que disponibiliza o imunizante pelo SUS desde 2013.
Segundo o infectologista Alexandre Naime, o herpes-zóster também é alvo de outro fenômeno: as pessoas falarem mais sobre seus problemas de saúde. “No consultório, eu atendo de três a quatro casos por semana. Faz bastante tempo que é algo comum, mas agora se fala muito mais, porque as pessoas expõem o que antes escondiam”, teoriza o vice-presidente da SBI.
Contra-ataque ao vírus
Quanto antes se diagnostica o zóster, maior a eficácia do tratamento e menor o perigo de consequências graves.
“É importante as pessoas ficarem atentas a fatores de risco e agravamento, como presença de diabetes e câncer, que podem exigir tratamentos mais agressivos e afetarem a imunidade”, aponta o médico Rodrigo Lins, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia do Rio de Janeiro.
O recomendado é que, assim que surgir a dor decorrente do ataque aos nervos — e, convém frisar, ela geralmente aparece como umas pontadas —, deve-se procurar um profissional de saúde. Ela é o sintoma inicial do zóster. Não as lesões na pele.
O tratamento é baseado em dois pilares: uso de antivirais e analgésicos.
A primeira classe, se administrada em até 72 horas após as primeiras bolhas, consegue diminuir a disseminação viral, a gravidade e a duração das dores, promover uma cicatrização mais rápida das lesões e prevenir a formação de novos machucados.
Já a segunda visa amenizar a dor. Alguns médicos ainda prescrevem corticoides para inibir a inflamação, mas não há estudos robustos que comprovem um papel aqui. Se tudo correr bem, o tempo médio para as bolhas murcharem é de até dez dias.
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A melhor forma de lidar com o vírus, no entanto, é impedindo que ele acorde no organismo. Para isso, vale a pena adotar um estilo de vida equilibrado, que ajuda a manter as defesas a postos, e se vacinar contra o herpes-zóster.
Há anos temos no mercado brasileiro o imunizante Zostavax, do laboratório MDS, feito com vírus vivo atenuado. Trata-se da fórmula aplicada contra a catapora na infância, só que bem mais concentrada — a carga de vírus atenuados é 14 vezes maior.
Ela está indicada a pessoas acima de 50 anos, tem até 70% de eficácia e oferece proteção, em média, por cinco anos. Não está disponível no SUS. Na rede privada, o valor da dose única fica entre 500 e 700 reais.
Por ser uma vacina de vírus vivo, ela é contraindicada a alguns grupos, como o dos imunodeprimidos, justamente um dos que estão mais vulneráveis ao zóster.
“Pessoas que passaram por um transplante, têm HIV ou utilizam medicamentos imunossupressores correm maior risco de que a infecção atinja múltiplos nervos, o que reforça a necessidade de prevenção”, afirma Lins.
Para driblar esse problema, uma solução acaba de chegar ao país: um novo imunizante, batizado de Shingrix e fabricado pelo laboratório GSK.
“Essa vacina não usa vírus vivo, mas uma tecnologia recombinante. Os cientistas pegaram só uma proteína do vírus e adicionaram uma substância que melhora nossa resposta imunológica”, resume a infectologista Maria Isabel de Moraes Pinto, consultora do Delboni Medicina Diagnóstica.
Os estudos registraram eficácia de até 97% e proteção por mais de dez anos. “É a primeira vacina para zóster que qualquer indivíduo imunossuprimido com mais de 18 anos pode tomar”, pontua a médica.
A Shingrix tem regime de duas doses e também estará disponível a pessoas com a imunidade normal acima de 50 anos. Por ora, só nas clínicas privadas — e por mil reais cada dose.
“As novas vacinas chegam com um preço maior, mas isso deve diminuir com o tempo. O essencial é se conscientizar sobre a importância do imunizante”, diz Maria Isabel.
Se pensarmos que esse patógeno está por trás tanto da catapora como do zóster, tal cuidado deve começar na infância e se estender à maturidade.
A ameaça do herpes-zóster Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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