“Convido você a fazer uma conexão genuína com sua essência, uma viagem rumo à sua espiritualidade. Olhar generosamente para suas dores e mágoas e perdoar a si mesmo e aqueles que de alguma forma lhe causaram sofrimento.”
Há algumas décadas, esse convite provavelmente seria proferido por um padre, um pastor ou mesmo um esotérico. Hoje, porém, tal orientação pode muito bem ser oferecida em uma consulta de um cardiologista ou ainda por profissionais que atuam na área de cuidados paliativos.
Até o início da década de 1970, pesquisas sobre espiritualidade ficavam restritas às ciências humanas e às religiões, sem muito espaço na prática médica. Porém, cada vez mais os especialistas entendem a relevância da espiritualidade no acompanhamento de pacientes crônicos ou daqueles que estão fora das possibilidades de cura.
Mas o que entendemos por espiritualidade? Em primeiro lugar, é necessário distinguir espiritualidade de religiosidade. Espiritualidade é a forma como se busca ou se expressa o sentido da vida, a conectividade consigo, com os outros e com o ambiente — e ela independe de o sujeito ter ou não uma religião. Já religiosidade, sim, está ligada a uma doutrina.
Como coloca o Departamento de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), o conceito de espiritualidade é mais amplo e envolve um conjunto de valores morais, mentais e emocionais que norteiam pensamentos, comportamentos e atitudes.
A separação entre espiritualidade e religião é uma das mudanças sociológicas do nosso tempo. As instituições religiosas por muitos anos mantiveram hegemonia sobre o cuidado com a espiritualidade, porém estamos democratizando tal abordagem, ampliando e ressignificando esse olhar para o paciente e sua realidade.
Em 2019, pela primeira vez, uma diretriz nacional de prevenção cardiovascular destacou os benefícios da espiritualidade para a saúde do coração. De acordo com o documento, baseado em evidências científicas, pessoas que cuidam de sua espiritualidade estão menos vulneráveis a estresse, depressão e ansiedade e mais dispostas a praticar exercícios físicos e manter a pressão e o colesterol em níveis aceitáveis.
Recentemente, o Grupo de Estudos de Cuidados Paliativos da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) publicou uma revisão em cima de dez estudos internacionais e identificou que, no contexto de assistência a indivíduos com cardiopatias avançadas, a espiritualidade é mencionada como recurso de alívio em 60% dos casos, minimizando o sofrimento e melhorando a qualidade de vida.
Os achados foram apresentados e debatidos por profissionais de saúde no 42º Congresso da Socesp, realizado em junho na capital paulista.
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Caminhos para mudar, perdoar e ser feliz
A conexão do ser humano com a sua espiritualidade pode trazer não só redução de sintomas como garantir um espaço para mudanças, num percurso em que o indivíduo busca um novo sentido para as limitações que o adoecimento impõe e compreende sua realidade física, psíquica, social e espiritual.
Nesse sentido, é preciso oferecer atenção e acolhimento a partir da singularidade de cada sujeito, respeitando suas concepções e desejos. Quando o paciente se encontra em cuidados paliativos, de frente com sua finitude, uma escuta atenta e acolhedora pode potencializar os recursos internos daquela pessoa, conferindo alívio e serenidade.
Além disso, a busca por reconciliações, por uma reconexão possível com pessoas que ficaram pelo caminho, e o próprio ato de perdoar trazem a sensação de paz e bem-estar.
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Aliás, uma das raízes da espiritualidade se encontra na capacidade de perdoar. E os benefícios do perdão para a saúde cardiovascular motivam um número crescente de trabalhos científicos.
Em um estudo brasileiro focado em pacientes que sofreram infarto, os resultados sugerem que o ímpeto de perdoar configura um fator de proteção contra doenças cardiovasculares. A pesquisa dividiu os participantes em dois grupos, com praticamente o mesmo número de integrantes, sob os critérios “infartados” e “não infartados”.
Entre as conclusões, também vimos que aqueles que haviam passado pelo evento apresentavam menor disposição para o perdão, além de ter a espiritualidade menos desenvolvida e uma vivência de religiosidade negativa.
A explicação para “os males de não perdoar” pode estar no estresse gerado por quem se sente injustiçado em determinada situação, por exemplo. Isso porque o organismo está preparado para agir defensivamente, com respostas químicas, em condições de perigo real ou imaginário.
Quando esse estado de alerta é constante, as respostas fisiológicas produzidas, em vez de nos proteger, agridem o corpo, propiciando doenças como as cardiovasculares.
Hoje se admite que aspectos psicossociais — e a espiritualidade está entre eles — é o terceiro maior fator de risco para problemas do coração, atrás apenas de tabagismo e colesterol alto.
A construção de novos padrões de vida capazes de ajudar uma pessoa a não infartar (ou reinfartar) é vital, porque estamos falando da principal causa de morte e incapacitação no mundo. Entender como a espiritualidade e outras questões psíquicas e sociais influenciam a ocorrência da doença contribui para abrir caminhos de promoção à saúde, prevenção e engajamento no tratamento.
A meta é uma só: viver com mais qualidade, plenitude e felicidade. De coração leve!
Não importa o caminho que um indivíduo escolhe para fortalecer sua conexão com a espiritualidade. Essa busca e reflexão visam, na verdade, proporcionar maior consciência de sua trajetória de vida e possibilidades de transformação diante do sofrimento que o processo de adoecimento suscita.
E, com isso, podemos encontrar novas formas de alívio e resgatar a potência única de cada sujeito com sua história.
* Suzana Avezum é psicóloga e psicanalista e diretora do Departamento de Psicologia da Socesp; Karla Carbonari é médica e integrante do Grupo de Estudos de Cuidados Paliativos da Socesp
A espiritualidade nas pesquisas, nos consultórios e nos hospitais Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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