A conta chegou! Como era de esperar, a pandemia deixou cicatrizes no desenvolvimento dos nossos filhos. É o que documentam os primeiros estudos sobre a chamada Geração Covid, aquela que nasceu ou cresceu durante o período de restrições desencadeadas pelo coronavírus.
Com o isolamento social e uma rotina distante de outras crianças e da escola, boa parte dos pequenos teve experiências limitadas numa etapa da vida marcada por descobertas e a exploração do mundo. O universo ficou confinado às paredes de casa, a interação com os outros encolheu e o acesso à educação e às opções de lazer também saiu prejudicado.
Já dava para antever os efeitos desse cenário conturbado no desenvolvimento físico, psíquico e emocional dos mais novos. E, de fato, a ciência desnuda agora as consequências.
Uma pesquisa da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, comparou a evolução esperada de bebês de 6 meses nascidos antes e durante a pandemia. Resultado: os especialistas notaram que os pequenos que chegaram ao mundo em meio ao isolamento tiveram pontuações mais baixas no desenvolvimento motor — importante para virar sozinho de barriga pra baixo e pegar um brinquedo com as mãos, por exemplo — e socioemocional, aquele que molda o convívio com pessoas fora do círculo familiar.
Para a psicóloga Maria Beatriz Martins Linhares, professora sênior da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), esses achados eram previstos. “A primeira infância é a fase em que a arquitetura cerebral está pulsante, é o momento ideal para aprender e ganhar habilidades básicas para a trajetória do desenvolvimento humano”, justifica. É nessa janela temporal que o contato com a natureza e os outros, as brincadeiras ao ar livre e a vivência de desafios estimulam o cérebro e fazem o corpo crescer com saúde.
Tudo isso foi podado entre os filhos da pandemia. “A restrição das atividades nos primeiros anos de vida claramente impacta no curto, no médio e no longo prazo. A área do cérebro ligada à integração social fica comprometida, bem como as habilidades cognitivas e as relacionadas ao planejamento motor”, resume a neuropediatra Liubiana Arantes, presidente do Departamento de Pediatria do Desenvolvimento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
As descobertas do estudo de Colúmbia, e de tantos outros tocados pelo globo, tornam mais palpável a angústia dos pais dessa geração. Sobretudo daqueles que começaram a desconfiar de atrasos no aprendizado de tarefas como engatinhar, andar e falar.
A saúde mental também não passou em branco — mesmo entre os novinhos de tudo. No Brasil, um estudo conduzido pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apontou um crescimento significativo no número de bebês que, aos 6 meses, apresentavam irritabilidade e dificuldades de adaptação à rotina.
“Sabemos que a pandemia aumentou a sobrecarga dos pais, e esses comportamentos infantis podem ser entendidos como um reflexo do estresse parental, do uso frequente de telas ou mesmo da falha em compreender e atender as demandas das crianças”, analisa a pediatra Claudia Lindgren Alves, professora da UFMG e coordenadora do trabalho.
Segundo Maria Beatriz, o estresse crônico, em todos os sentidos, deve ser encarado como um fator de risco para o desenvolvimento infantil. “A chance de haver impactos negativos em um cenário estressor é sempre potencializada”, afirma a psicóloga e docente da USP.
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Da barriga da mãe à longa infância
Há quem suspeite que as repercussões do estresse começam ainda quando o bebê está no útero. Pesquisadores da Universidade de Calgary, no Canadá, acompanharam grávidas durante a pandemia e usaram imagens de ressonância magnética para avaliar o cérebro das crianças três meses após o parto.
Descobriram que filhos de mulheres que relataram sintomas de ansiedade e depressão na gestação apresentaram alterações em regiões cerebrais como a amígdala e o córtex pré-frontal, relacionadas, respectivamente, às emoções e à cognição. Um experimento anterior, feito pelo mesmo grupo canadense, já sugeria que tais mudanças no padrão neural estariam associadas a comportamentos agressivos e hiperativos no futuro.
Ocorre que os reveses não se restringem à primeiríssima infância. Longe disso. Tudo indica que o baque foi sentido pela garotada mais velha, que, com as escolas fechadas, perdeu contato com colegas da mesma faixa etária, algo fundamental para o desenvolvimento. Isso sem contar as lacunas deixadas pelo ensino remoto.
“Como resultado da pandemia, estamos vendo muitas crianças com prejuízos intelectuais e emocionais, insegurança e atraso na alfabetização”, relata Cássia Longo, líder de educação dos programas da Fundação Abrinq.
O médico Guilherme Polanczyk, do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes, ainda ressalta o aumento nas taxas de ansiedade nessa turma. A criançada trocou medos fantasiosos e típicos da infância por receios reais atrelados a doença e morte — e de forma muito precoce.
“As crianças precisam ter aquela noção de que os pais e cuidadores têm algum controle sobre a segurança delas, mas a pandemia escancarou as inevitabilidades da vida, o que gera essa ansiedade toda”, afirma o psiquiatra. Dentre os sinais que apontam para algum tipo de consequência dessa fase tão assustadora, estão dificuldades para se aproximar de desconhecidos nas brincadeiras, pouca comunicação, tempo demais nas telas, regressões nos comportamentos, agressividade, inibições, dificuldades para dormir e até mesmo queixas físicas, como dores e mal-estares sem razão aparente.
A família e a escola devem ficar de olho nessas pistas, inclusive porque a pandemia não acabou e não dá para dizer que meninos e meninas vão esquecer isso tudo e seguir a vida como se nada tivesse acontecido. Muito pelo contrário! É preciso acompanhar de perto, ouvir e entender as angústias e os medos que ficaram e cuidar para que eles não carreguem sequelas emocionais.
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Correndo atrás do prejuízo
Estudos de monitoramento das crianças seguem em curso, mas a pergunta que não quer calar é: dá para correr atrás e reverter os prejuízos? Os especialistas são unânimes em dizer que sim, desde que os cuidadores percebam comportamentos inesperados ou inadequados e, junto aos profissionais de saúde, possam intervir quanto antes.
Pesquisas feitas em comunidades afetadas por desastres naturais mostram que nem sempre os efeitos da experiência são duradouros se houver uma atuação para reconhecer e solucionar os entraves ao desenvolvimento infantil. A ciência explica: na primeira infância, o ser humano conta com maior neuroplasticidade, ou seja, seu cérebro é remodelado com mais facilidade para se ajustar ou reaver oportunidades perdidas.
Para isso, porém, precisamos dar apoio, estímulos e as ferramentas certas aos pequenos. “Vamos imaginar que estamos em uma corrida e nossos bebês e crianças estão saindo atrasados, depois da largada. Mas, se nós ajudarmos, eles serão capazes de recuperar posições e até mesmo ganhar a prova”, ilustra a professora Maria Beatriz.
Sim, nunca é tarde para instigar as habilidades motoras, cognitivas e emocionais. “Crianças que perderam a janela de oportunidades dessa fase da vida ainda assim podem se desenvolver bem. Só poderão necessitar de mais estímulos e repetições”, avalia Liubiana. Trata-se de um trabalho em conjunto. Os pais e a escola devem se pautar pela sinergia, olhando para as vivências, as emoções e as eventuais defasagens do aprendizado de cada criança.
Além disso, os estudiosos da área reforçam a necessidade de instaurar políticas públicas assertivas que deem suporte ao desenvolvimento infantil em todas as suas facetas, atendendo principalmente garotos e garotas de famílias com menos recursos. “As disparidades sociais têm papel claro nas consequências que estamos vendo. O nível socioeconômico é um fator moderador que influencia como os efeitos são sentidos pelas crianças, e os menos privilegiados certamente foram mais afetados nesse contexto”, explica Polanczyk.
Não importa a configuração de cada lar, o ponto que une as linhas por aqui é que, se quisermos que todas as crianças cresçam com saúde e recuperem o “tempo perdido”, teremos de dar mais atenção a elas, engajá-las em leituras, jogos e brincadeiras, ajudar nas lições de casa, suprir os cuidados básicos e criar um canal de comunicação e um ambiente seguro.
Temos uma maratona pela frente. Mas dá para vencer essa prova se estivermos de mãos dadas com as nossas crianças.
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E essa tal de “crechite”?
O termo ganhou as redes sociais com mães e pais compartilhando episódios recorrentes de virose entre os filhos que frequentam creches ou escolas. O infectologista pediátrico Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), atesta que foi impressionante o número de crianças com sintomas respiratórios neste outono-inverno.
“Nos últimos dois anos, com o protagonismo da Covid-19, tivemos um silêncio dos demais vírus. Eles não tiveram espaço para circular principalmente por causa do distanciamento social e do uso da máscara. Mas voltaram com a retomada das aulas”, explica.
“Fora isso, as crianças nascidas na pandemia não se expuseram a vírus respiratórios. É uma garotada que está se infectando agora pela primeira vez”, completa o especialista.
O novo normal das crianças
O que podemos fazer para que os pequenos se desenvolvam com corpo e mente em equilíbrio
Controle as telas: foi inevitável liberar um tempo a mais durante o isolamento? Tudo bem, mas agora chega! Estabeleça limites para o uso saudável.
Abrace a rotina: ela é uma aliada do bom desenvolvimento infantil. Estipule (e ajude a cumprir) os horários para comer, brincar, estudar e dormir.
Ponha movimento: a prática de esportes, as atividades ao ar livre e o contato com a natureza devem ser continuamente estimulados.
Conecte-se com eles: escute a criança, converse, procure entender seus sentimentos e brinque muito! Algo não se resolve? Busque um profissional de saúde.
Olhe para si: nossos medos e emoções influenciam o estado mental dos mais novos. É fundamental estar bem para cuidar bem deles.
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A escola pós-pandemia
Instituições tiveram que se reorganizar para atender novas demandas
Escuta ativa: as crianças voltaram às aulas diferentes e com toda uma bagagem emocional. Manter um canal de comunicação aberto com elas é vital.
Resgate do convívio: é hora de refazer os vínculos. A escola precisa criar mais momentos de socialização, com passeios, brincadeiras e atividades em grupo.
Individualização: cada um teve uma experiência de aprendizado remoto diferente e chegou com defasagens específicas. A abordagem do aluno deve ser personalizada.
Segurança: as escolas têm de seguir os protocolos sanitários e identificar quanto antes surtos para resguardar quem frequenta suas dependências e a comunidade.
Políticas públicas: especialistas defendem um plano capitaneado pelo governo para fortalecer a educação básica e reverter os déficits criados
pela pandemia.
A geração Covid: o impacto da pandemia no desenvolvimento das crianças Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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