Texto Rafael Battaglia | Edição Bruno Vaiano
Ilustração Kenji Lambert | Design Natalia Sayuri Lara
São três da tarde de uma terça-feira. Um americano se apresenta dizendo hello – e recebe respostas em português e em espanhol. Um japonês e um alemão conversam sobre seus desenhos e músicas favoritas. Um francês se lamenta por ninguém falar sua língua.
Não é um vestiário dos Jogos Olímpicos. É o chat do Lofi Girl, um canal do YouTube com 8,8 milhões de inscritos, cuja principal atração é uma live infinita, que funciona como rádio 24 horas. Uma rádio de um só gênero: lo-fi hip-hop.
Melodias relaxantes, arranjos discretos, ritmo lento e ausência de letra. Esse estilo musical, que tem raízes no começo dos anos 2000, deslanchou nos últimos anos em rádios online e playlists de plataformas de streaming – no Spotify, por exemplo, a coletânea “Lofi beats” (sem tracinho mesmo), com curadoria diária, tem mais de 4 milhões de curtidas.
Os ouvintes de lo-fi têm algo em comum: usam a música – um amálgama de jazz, música eletrônica e hip-hop – como pano de fundo relaxante para ler, estudar, trabalhar, dormir, meditar. A popularidade do lo-fi ganhou um gás com o início da pandemia, quando se tornou remédio de ansiosos trancados em casa. O ator e rapper Will Smith, por exemplo, criou duas playlists no YouTube como forma de ajudar os seus seguidores a enfrentar a quarentena. Juntos, os mixes somam três horas de música – e 20 milhões de visualizações.
Mas, afinal, essas músicas realmente ajudam com a concentração? O que acontece com o nosso cérebro quando as ouvimos? E quem são os artistas por trás desse som?
Música de garagem
Qualquer música pode ser lo-fi. A expressão, originalmente, não está ligada a um único gênero, mas sim à qualidade do som. “Lo-fi” vem de low fidelity, “baixa fidelidade”. São gravações caseiras, sem o padrão-ouro cristalino de um estúdio.
Isso não é novidade. Nos anos 1950, já havia tecnologia para jovens músicos gravarem suas músicas de forma relativamente rápida – e barata. Em 1967, os Beach Boys montaram o álbum Smiley Smile em um estúdio improvisado na casa do líder da banda, Brian Wilson. Exile on Main Street (1972), dos Rolling Stones, foi feito em um porão. Nos anos 1990, Beck e Beastie Boys encheram os bolsos com a estética de som improvisado.
Foi em 2000 que dois padrinhos do atual lo-fi despontaram: o rapper americano J Dilla e o produtor Nujabes, do Japão. Ambos faziam hip-hop com fortes influências do jazz e do soul. Nos anos seguintes, diversos subgêneros apareceram na internet, misturando gêneros afro-americanos com nostalgia das décadas de 1980 e 1990 em músicas eletrônicas de batida mais lenta – um estilo que ficou conhecido como downtempo (“andamento lento”).
O canal Lofi Girl surgiu em 2015, mas sob outro nome: Chilled Cow (“vaca relaxada”). Foi só em 2017 que o artista colombiano Juan Pablo Machado criou, a pedido do próprio canal, uma nova identidade visual para as lives: uma imagem em loop de alguém estudando, com um estilo de desenho inspirado em Hayao Miyazaki, diretor de animes consagrados, como A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado. Assim nasceu, de fato, a Lofi Girl – essa garotinha de headphones:
Em pouco tempo, a Lofi Girl se tornou um fenômeno, aparecendo em estampas de roupa e servindo de inspiração para releituras, que adaptam o original com novos cenários e elementos. A Lofi Girl brasileira, por exemplo, é negra e tem um vira-lata caramelo.
A live com músicas para estudar e relaxar da Lofi Girl é uma das mais longevas do YouTube – e só não é maior porque, em fevereiro de 2020, a plataforma acidentalmente interrompeu a transmissão, que àquela altura acumulava 13 mil horas e 218 milhões de views. O canal voltou a funcionar logo depois.
Hoje, a garotinha de fones de ouvido está presente em outras plataformas de streaming, e reúne milhares de fãs em comunidades nas redes sociais. Virou também um selo: artistas podem lançar suas músicas sob o guarda-chuva da Lofi Records, e as faixas tocam nas lives e playlists da marca. A empresa também organiza ilustradores, que fazem as artes de cada single, e encoraja criadores de conteúdo a usar suas músicas – com os devidos créditos, claro. O que nos leva aos músicos. Quem são as pessoas que abastecem a Lofi Girl?
Do beat ao play
É um dia de trabalho como outro qualquer para o músico Nery Bauer, que vive em Criciúma, Santa Catarina. Para chegar ao seu estúdio, ele veste uma camiseta com estampa do Karatê Kid e caminha alguns passos dentro de casa.
Nery, de 50 anos, começou a sua carreira no final da década de 1980, tocando em bandas de heavy metal. Nos anos 2000, virou produtor, enveredou pela música eletrônica e chegou a emplacar alguns lançamentos em vinil na Europa. Até que, em 2018, influenciado por estilos de que gostava, como o hip-hop instrumental, passou a compor lo-fi.
“Tenho à disposição um baixo e uma guitarra, mas 80% do meu som vem do computador e de um pequeno teclado conectado a ele”, explica Nery, que também obtém samples (trechos de músicas pré-existentes e outros sons usados como elementos na composição) em bancos de dados pagos na internet. No lo-fi hip-hop, é comum ainda utilizar outros aparelhos, como o sampleador (que organiza os samples) e a drum machine (que emula instrumentos de percussão para criar a batida, ou beat).
O ritmo de trabalho é alto: ele lança uma música por semana, sob diferentes alter egos, como Jaztorius e Ray Ben Rue (um anagrama do seu nome), cada um com um estilo diferente. O processo é todo independente. Além de compor, Nery cria a arte de cada single e faz a mixagem e a masterização (etapas de pós-produção); sua esposa o ajuda com o marketing e a divulgação. No final, ele envia a faixa para uma distribuidora, que faz o meio de campo entre o artista e as plataformas de streaming. Essa empresa cuida só da burocracia – não interfere na música.
Cada plataforma tem o próprio modo de remunerar os artistas. Aqui, vamos explicar como funciona o do Spotify, que concentra 36% do mercado e reúne o maior número de usuários dentre os serviços (365 milhões) – o que o torna a principal fonte de renda para muitos artistas lo-fi.
O Spotify ganha dinheiro de duas formas: anúncios e assinaturas (45% dos usuários pagam algum tipo de mensalidade). Dois terços dessa grana vão para um fundo de royalties, que a distribui entre os detentores dos direitos das músicas. Em 2020, esse fundo atingiu US$ 5 bilhões.
A divisão dos royalties é feita por meio de uma cota, calculada mensalmente em cada país conforme o número de plays de uma música e a quantidade de usuários daquele lugar. Ou seja: dependendo de onde a canção for executada, ela pode valer mais – ou menos.
No ano passado, só 13 mil dos 1,2 milhão de artistas no Spotify ganharam mais de US$ 50 mil em royalties. “Acredito que, para grandes artistas e gravadoras, que investem pesado em uma única música, esse modelo não seja tão vantajoso”, opina Nery. “Mas, para quem é independente como eu, o investimento é praticamente zero e há um retorno sustentável.” Ele vive exclusivamente da grana do streaming.
Existem alguns truques para se dar bem nesse sistema. A maioria dos artistas opta por lançar singles em vez de álbuns completos, para aumentar o volume e a periodicidade de lançamentos. Quem consegue aparecer nas grandes playlists, como as organizadas pelas plataformas, tira a sorte grande, já que isso aumenta (muito) o número de plays. Nos anos 1990, seria como emplacar um clipe na MTV. Se a música estiver nas primeiras posições da lista, melhor. “Os curadores de playlists são os novos programadores de rádio”, diz Nery.
O lo-fi é um gênero musical essencialmente criado na internet, e ainda é difícil analisar com detalhes todos os seus desdobramentos. Termos como “chillhop” e “jazzhop”, por exemplo, ora aparecem como subgêneros, ora como sinônimos. Mesmo assim, já dá para dizer que existe um “lo-fi brasileiro” – ou pelo menos uma semente dele.
Criada há dois anos, a Tangerina Music é um selo que ajuda a divulgar o trabalho de artistas nacionais. “Ela funciona como um hub para que músicos troquem informações e experiências, como um coletivo”, explica Fábio Bittencourt, idealizador do projeto e que também produz lo-fi hip-hop, sob o nome artístico FaOut. “Eu recebo umas 400 músicas por semana. É bastante coisa, mas tento ajudar o máximo possível.”
Fábio é um dos nomes por trás do álbum Chill Brazilian Storm, lançado em 2021. É o primeiro a reunir artistas da cena brasileira de lo-fi com um único objetivo: compor músicas do gênero com toques de samba e bossa nova. A capa do álbum incorpora esse sentimento com uma cena típica de bairro da periferia, com mesas de plástico em um boteco e cacos de vidro em cima de um muro. Ficou curioso? Basta clicar aqui e ouvir a coletânea.
Baixando a guarda
A galera do lo-fi não é a primeira a criar música com o intuito específico de relaxar as pessoas. O pai da música ambiente moderna é o britânico Brian Eno. Em 1978, o artista – que já trabalhou com os Davids Bowie e Byrne, do Talking Heads – lançou o álbum Music for Airports, com longas faixas instrumentais.
A inspiração de Eno veio após horas esperando um voo no aeroporto de Colônia, na Alemanha. Já havia coisas parecidas antes, claro – gravadoras já faziam música para lojas ou elevadores –, mas Eno popularizou o termo “música ambiente”. O Music for Airports, inclusive, foi divulgado com a premissa de “induzir calma e um espaço para pensar”.
Quando ouvimos uma canção, diversas áreas do cérebro entram em cena para entender – e reagir – ao que está acontecendo: regiões associadas à audição e ao reconhecimento da fala, os sistemas de prazer e recompensa e até os que regulam atividades fisiológicas, como os batimentos do coração e a respiração.
É por isso que playlists de academia tocam em um ritmo acelerado. Estudos já mostraram que músicas do tipo podem aprimorar os efeitos dos exercícios físicos, reduzindo a sensação de esforço e aumentando a frequência cardíaca.
Além disso, milhões de anos de evolução transformaram o cérebro em uma máquina de reconhecer padrões. Compreender o ambiente e tentar prever o que vai acontecer nos torna mais bem preparados caso algo estranho role. E a audição é uma grande aliada nessa tarefa.
“Nós somos predispostos a ouvir coisas. Isso pode nos dar informações sociais valiosas, que aumentam nossas chances de sobrevivência”, diz Gabriel Gaudencio Rego, membro do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social do Mackenzie. Lembre-se: no ônibus, é impossível não prestar atenção na conversa dos outros ao telefone.
Tudo isso significa que, quanto mais previsível é a sequência de sons em um ambiente, mais relaxados ficamos. Por outro lado, acontecimentos sonoros inesperados monopolizam a atenção. “Incapaz de antecipar o que vai acontecer, nosso corpo libera uma série de hormônios, como adrenalina e cortisol, para que o organismo fique o mais alerta possível”, explica Gabriel.
Esse é o segredo do lo-fi. O ritmo lento (entre 70 e 90 batidas por minuto), a ausência de letra e o excesso de repetição mantêm nossa audição estimulada em um ambiente sonoro previsível; uma bolha confortável. Elementos nostálgicos, como um sample do barulho de chuva, o ruído do vinil ou de uma fita cassete contribuem com o aconchego.
Juntos nessa
Há mais um elemento na equação que explica o sucesso do lo-fi: o senso de comunidade – tanto entre os artistas, por meio de parcerias e colaborações, quanto entre os ouvintes, que compartilham suas experiências na internet. Em 2020, no YouTube, houve mais de 2 bilhões de lives com a hashtag #withme (“#comigo”), em que as pessoas ligam a câmera e se põem a estudar, trabalhar ou limpar a casa.
É uma sessão de incentivo coletivo, embalada por música lo-fi. “Com a pandemia, muita gente usou esses vídeos como uma forma de se aproximar de outras pessoas”, diz Bruno Telloli, gerente de Cultura e Tendências do YouTube Brasil.
Mas, afinal: o lo-fi pode funcionar para qualquer pessoa? Depende. “Para algumas, sim; para outras, não”, diz Mariana Verzaro, professora de psicologia da USP. “Em sessões de musicoterapia, por exemplo, fazemos um perfil de cada paciente com base nos seus gostos e experiências. A música pode ajudar em diversos tratamentos, mas não há uma receita única para todos.”
Para mim deu certo. Ao longo do mês em que apurei este texto, as noites em que ouvi lo-fi (especialmente as chuvosas) foram os momentos em que cheguei mais perto de esquecer os problemas da quarentena. E, de fato: em uma era de ansiedade, qualquer tentativa de desacelerar é sempre bem-vinda.
LINHA DO TEMPO
Da música de aeroporto ao YouTube, alguns marcos da história do lo-fi hip-hop.
1978
Brian Eno, difusor do conceito de “música ambiente”, lança o álbum Music for Airports, pensado do zero para servir como paisagem sonora.
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2001
O rapper J Dilla lança o CD Welcome 2 Detroit, com influências do jazz e do soul. Junto ao produtor japonês Nujabes, ele é considerado um dos padrinhos do lo-fi hip-hop.
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2013
O canal Chillhop Music, no YouTube, cria uma das primeiras playlists de músicas lo-fi da plataforma.
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2017
Nasce a rádio 24 horas Lofi Girl dentro do canal Chilled Cow. O desenho da garotinha que ilustra o vídeo se transforma em um ícone pop – e em um dos símbolos do estilo musical.
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2020
Por engano, o YouTube encerra momentaneamente a live da Lofi Girl. Àquela altura, a transmissão acumulava 13 mil horas no ar – e 218 milhões de visualizações.
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2021
Artistas brasileiros lançam o Chill Brazilian Storm, álbum de lo-fi que mistura elementos nacionais, como samba e bossa nova.
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Lo-fi: por que essa música faz seu cérebro relaxar (e quem são os artistas por trás dela) Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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