Poucos assuntos são tão badalados quanto os cuidados com a pele. Cremes, pomadas, sprays e tantos cosméticos que prometem reforçar a hidratação ou trazer uma solução para espinhas e rugas surgem com regularidade no mercado, tornando a estética uma das áreas campeãs de audiência.
Só que há outro lado, bem menos glamouroso mas nem por isso menos vital, que pede nossa atenção quando falamos em saúde da pele: a luta contra feridas e lesões crônicas, de difícil cicatrização e capazes de expor o corpo a várias complicações, e tantas vezes relegadas às quatro paredes dos hospitais. A boa notícia é que os especialistas nesse front vêm ganhando novas armas para vencer os antigos tormentos.
As feridas crônicas surgem de diversas formas. Podem começar, digamos, por dentro, a partir de doenças circulatórias ou do diabetes mal controlado, que atrapalham a cicatrização de qualquer corte ou picada de inseto, por exemplo. Assim como podem vir de fora, causadas por traumas físicos ou mesmo infecções.
Também despontam quando o indivíduo se movimenta pouco ou está acamado e em atrito constante com o lençol, caso das úlceras de pressão, as populares escaras. Ou, ainda, são resultado do contato com fogo e altas temperaturas, um dos acidentes mais frequentes por trás desse tipo de lesão na pele. A Sociedade Brasileira de Queimaduras estima em até 1 milhão de episódios por ano — cerca de 100 mil exigem atenção hospitalar.
Somando as vítimas de tantos estragos, temos um problema de saúde pública. “Hoje, no Brasil, são em torno de 5 milhões de pacientes que tratam feridas por meses ou anos. É um tratamento caro, que muitas vezes envolve complicações, internação em UTI, procedimento cirúrgico e até amputação”, contextualiza a bióloga Carolina Caliári, fundadora da startup In Situ Terapia Celular, de Ribeirão Preto (SP), que está desenvolvendo um curativo biológico com base em células-tronco — uma das novidades que prometem revolucionar o combate a essas enfermidades.
Carolina faz parte de um grupo de profissionais brasileiros que pensam, atuam e inovam para melhorar a cicatrização de lesões na pele, prevenindo situações corriqueiras e tenebrosas como infecções potencialmente letais.
E há muita tecnologia nessa história. Algumas delas recorrem a raios laser, a lâmpadas de LED ou a impressoras 3D. Outras transformam a pele da tilápia, um peixe comum no país todo, em um curativo capaz de proteger o ferimento e ajudá-lo a sarar — são pesquisas e conquistas que você verá ao longo da reportagem.
Quem é quem entre as lesões
O que está por trás das feridas que tendem a se agravar e tornar-se crônicas
Feridas crônicas: são aquelas que demoram a cicatrizar e, sem tratamento, não fecham naturalmente. A lesão é vista como crônica quando se estende por mais de um mês.
Pé diabético: o diabetes não controlado dificulta a cicatrização e predispõe a infecções nas feridas. Se o quadro piora e não é remediado, pode acarretar amputação.
Infecções: bactérias e outros micróbios podem se aproveitar de cortes, traumas e doenças pré-instaladas para se espalhar pela ferida — e depois pelo corpo.
Úlceras de pressão: também chamadas de escaras, são mais comuns em pacientes acamados ou com restrição de movimentos. O atrito leva a ferida e necrose.
Insuficiência venosa: as veias sofrem para fazer o sangue percorrer seu caminho. Ele se acumula nos membros, levando a inchaços e aumentando o risco de feridas nas pernas.
Traumas: aqui entram cortes provocados por acidentes. Exigem a remoção de eventuais fragmentos do que provocou a lesão e a desinfecção do local.
Queimaduras: os danos de segundo grau em diante podem ser difíceis de cicatrizar, o que demanda tratamento médico e, às vezes, enxertos e cirurgia plástica.
Solução made in Brazil
Uma das estrelas nacionais no tratamento de queimaduras, o curativo elaborado com a pele de tilápia surgiu de uma experiência anterior, que usava um princípio semelhante com matéria-prima extraída de rãs — apesar dos bons resultados iniciais, a iniciativa com os anfíbios não avançou tanto. O peixe, por outro lado, demonstrou um potencial que conquistou os pesquisadores de imediato.
“Quando fizemos o primeiro estudo, deparamos com uma quantidade de colágeno muito semelhante à da pele humana, e com um material resistente à tração e de boa umidade. Nem nos detivemos em outras espécies devido a todas essas vantagens e à facilidade de encontrar a tilápia em vários locais do Brasil e do mundo”, conta o cirurgião plástico Edmar Maciel, presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), em Fortaleza.
Os curativos de pele de tilápia ainda são utilizados em caráter de estudo, mas já beneficiaram centenas de pessoas e foram empregados em situações emergenciais até fora do país — em agosto de 2020, a Universidade Federal do Ceará (UFC), que participa do seu desenvolvimento, disponibilizou seus estoques para tratar os mais de 6 mil feridos na explosão do porto de Beirute, no Líbano.
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As aplicações, aliás, não se esgotam na saúde humana: o biomaterial foi utilizado na recuperação de animais que sobreviveram às queimadas no Pantanal no ano passado, num projeto em parceria com a ONG Ampara Animal.
Para os criadores da técnica, premiada aqui e lá fora, a matriz dérmica da tilápia, sem as células do peixe, pode ter um uso ainda mais amplo que o curativo. “Ela está sendo estudada em 13 especialidades médicas”, afirma Maciel. Entre as perspectivas, se avalia a aplicação como válvula cardíaca, no revestimento de próteses de mama e até recobrindo a calota craniana em cirurgias.
Voltando às feridas, a pele de tilápia não está sozinha como alternativa aos curativos convencionais. Entre as inovações dos últimos anos, que buscam recuperar a área doente mais rápido e com menos sofrimento, também entra em cena uma membrana especial de celulose, a Membracel.
“Parece um papel. É uma película bem delicada que funciona como um substituto temporário da pele”, descreve Thiago Moreschi, um dos diretores da Vuelo Pharma, em Curitiba, que produz a Membracel. Além das vantagens no tratamento, o fabricante estima que, em até dez minutos após a instalação da membrana, o paciente experimenta uma redução de mais de 90% da dor na região lesionada.
Problema complexo, tratamento completo
Mesmo com novas tecnologias sendo testadas e chegando ao mercado, a luta para os pacientes continua longa — até porque, às vezes, eles ignoram a gravidade do problema ou não têm acesso a uma terapia adequada.
“Feridas crônicas ficam pelo menos um mês em tratamento. É algo que atrapalha muito o bem-estar da pessoa”, resume a enfermeira estomaterapeuta Michele Brajão Rocha, responsável pela operação da Clínica ConvaCare, a primeira rede do Brasil especializada no tratamento desse tipo de lesão.
Vinculadas à ConvaTec, empresa que já desenvolvia produtos para feridas, as clínicas acabaram surgindo justamente pela demanda crescente por tratamento qualificado.
No último ano, além das lesões por traumas, infecções, queimaduras, diabetes e afins, os profissionais também notaram um aumento na necessidade de cuidados com as úlceras por pressão, que aparecem em acamados. A situação é ligada à própria pandemia: pacientes internados com Covid-19 grave nem sempre podiam se mexer ou serem movimentados para não prejudicar a capacidade respiratória.
O avanço no tratamento passa também por uma mudança de visão sobre o problema. “Hoje sabemos que o controle das feridas complexas é multidisciplinar. Não é para só um médico tratar”, diz o infectologista Ivan Marinho, do Centro de Tratamento de Feridas do Grupo Leforte.
Ele recruta, nesses casos, a medicina hiperbárica, outra tecnologia se popularizando no país — o paciente é colocado por um tempo em uma câmara com alta concentração de oxigênio, o que acelera a cicatrização. “Mas não adianta usar a câmara se a circulação não está adequada para mandar sangue até a ferida ou a pessoa se encontra desnutrida e com pouca capacidade de cicatrização”, elucida o médico.
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Fechar a lesão, evitar a reincidência e completar o ciclo da cura passam, assim, por uma abordagem multiprofissional e personalizada. A ideia é que, com base em protocolos específicos e tratamentos de ponta, o paciente tenha, em alguns meses, a chance de concluir a terapia sem ter de passar tanto tempo às escuras e trocando curativos sem sucesso.
“A ferida tem diversas fases: uma mais inflamatória, outra de cicatrização, e cada uma precisa de uma técnica diferente”, argumenta Michele. “O paciente tem que ser visto como um todo. A ferida não é só o lado externo, a lesão propriamente dita, mas também as doenças e os fatores de risco que levam a uma piora e precisam ser controlados para que ele melhore”, ressalta a expert. Aí, sim, haverá qualidade de vida à flor da pele.
O curativo que vem da tilápia
Uma das maiores promessas para o tratamento de queimaduras e outras lesões na pele foi desenvolvida no Ceará: um curativo natural criado a partir de um dos peixes mais encontrados pelo país.
“A tilápia é abundante em todo o Brasil e o segundo peixe em produção no mundo. E 99% da sua pele acaba descartada”, conta o cirurgião plástico Edmar Maciel, presidente do Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), um dos líderes dessa linha de pesquisa. A pele do animal é esterilizada e tem sua água removida, podendo ser embalada a vácuo e conservada em temperatura ambiente, o que facilita o transporte para regiões remotas.
Rica em colágeno, fundamental para a cicatrização, ela adere à pele humana em até 72 horas, evitando a contaminação do exterior e a perda de líquidos, comum em queimaduras. “Outra vantagem é que ela não precisa ser trocada diariamente, como no tratamento convencional”, explica Maciel. O grupo cearense está em tratativas avançadas com a Anvisa para aprovar sua aplicação mais ampla e fora dos estudos no país.
Do laser ao LED
O uso desses raios luminosos para o tratamento de feridas complexas — conhecido como fotobiomodulação — é uma saída indolor para preservar os tecidos do paciente. A luz, que é formada pelos pacotes de energia chamados fótons, atinge a pele danificada, de modo a transferir energia para as células. Essas células energizadas têm mais força para promover a cicatrização da ferida, por meio do estímulo à produção de colágeno.
Segundo a enfermeira Rita de Cassia Ferreira, pesquisadora do Hospital do Mandaqui, em São Paulo, cada cor de luz possui um comprimento de onda específico, provocando resultados diferentes na área da lesão. A azul tem efeito bactericida; a vermelha consegue chegar até a camada subcutânea e instiga a cicatrização em si; e a infravermelha pode alcançar o osso e atuar em lesões mais profundas e complicadas.
O Brasil é o grande centro mundial de pesquisas sobre o tema, e o tratamento já é amplamente oferecido na rede privada e pelo SUS em algumas prefeituras.
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A câmara hiperbárica
“Oxigênio é vida”, crava o infectologista e especialista em medicina hiperbárica Ivan Marinho, do Grupo Leforte. O que se prova ainda mais verdadeiro nessas câmaras especiais: um espaço confinado em que a pressão atmosférica em volta do paciente cresce conforme a concentração de oxigênio aumenta.
O método pode ser utilizado para tratar feridas complexas, infecções, o chamado pé diabético, necroses e queimaduras extensas, sempre em conjunto com outras terapias.
Altas doses de oxigênio conseguem ampliar a produção de colágeno, auxiliando na cicatrização, e a otimizar o trabalho das nossas células de defesa e a matar bactérias, prevenindo ou freando infecções.
Mas a regra geral, esclarece Marinho, é integrar a câmara hiperbárica a um tratamento mutidisciplinar — que cuide do estado nutricional e de outras doenças do paciente. Assim é que os efeitos do oxigênio extra serão sentidos pra valer. A tecnologia já está presente em todos os estados do Brasil, em hospitais públicos e privados.
Reparo com celulose
A Membracel, idealizada em Curitiba, é uma fina membrana de celulose que funciona como um substituto temporário da pele, a ser usado sobre feridas dos mais variados tipos, desde pequenas escoriações até grandes áreas queimadas.
Produzida utilizando-se uma colônia de bactérias que secretam celulose, a manta de componentes orgânicos é higienizada e purificada até chegar ao conteúdo final: uma membrana de celulose 100% cristalina e limpa.
“Muitas vezes, apenas uma película é suficiente para o tratamento inteiro”, conta Thiago Moreschi, um dos diretores da Vuelo Pharma, que fabrica e comercializa a Membracel. Um curativo pode durar de cinco a 12 dias, superando alternativas mais comuns no mercado.
Por isso, a membrana de celulose não precisa de acompanhamento diário e permite a desospitalização mais cedo, contribuindo para uma cicatrização sem marcas e, muito importante, com menos dor. O produto faz parte do tratamento-padrão em diversos hospitais e postos de saúde das redes pública e privada do país.
Com energia… elétrica
Não confunda: é comum que os tratamentos com laser e LED, dos quais já falamos, entrem na conta da eletricidade. “Todos são agentes eletrofísicos, mas a eletroterapia é somente o uso de corrente elétrica”, distingue o fisioterapeuta Richard Liebano, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
A técnica utiliza nossa “bateria cutânea”: a camada mais superficial da pele tem cargas elétricas negativas, enquanto a parte mais profunda conta com cargas positivas. “Quando há um ferimento, essas cargas se movimentam na direção dele, sinalizando a cicatrização”, explica Liebano. É o que os estudiosos chamam de corrente de lesão.
Mas, quando há uma ferida crônica, isso deixa de existir. É aí que entra a eletroterapia: com os eletrodos na pele, é como se o corpo estivesse sendo lembrado do que precisa fazer para cicatrizar. Embora seja mais barata, a técnica é preterida em relação ao laser no Brasil, muito em função da necessidade de aplicações mais frequentes.
“Mas não é todo paciente que responde igual ao mesmo recurso. Em muitos casos, o melhor resultado vem da mescla dos dois”, diz o professor.
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O biocurativo de células-tronco
É uma das premissas mais futuristas: células-tronco extraídas do cordão umbilical de recém-nascidos são mescladas a um gel, passam por uma impressora 3D e dão origem a um curativo 100% biológico.
Essa é a inovação que a In Situ, uma startup de Ribeirão Preto, desenvolve com financiamento da Fapesp e em parceria com o Hemocentro da cidade. “Essas células podem ser usadas em qualquer tipo de pessoa e não são rejeitadas. É um curativo inteligente: as células percebem como está a ferida e, de acordo com isso, liberam fatores de crescimento ou moléculas anti-inflamatórias”, explica a bióloga Carolina Caliári, que coordena o empreendimento.
A tecnologia de ponta busca oferecer uma alternativa a pacientes crônicos cujas feridas não desaparecem mesmo com o que já existe de melhor entre os métodos convencionais. Agora, os cientistas buscam sinal verde da Anvisa para a realização de testes clínicos e posterior registro. “A ideia é chegar até o SUS”, projeta Carolina.
Sensores para a prevenção
As lesões por pressão são um problema sério para pessoas acamadas — quadro que se acentuou no último ano. “Pacientes com Covid-19 em UTIs não podiam mudar de posição como se preconiza, pois era preciso priorizar a parte respiratória”, relata a enfermeira Michele Brajão Rocha.
Como sempre, prevenir é melhor que remediar: para indivíduos que podem ser movidos no leito, as trocas de posição são essenciais para evitar o surgimento de feridas crônicas nas costas, nos calcanhares…
Uma das invenções que vieram facilitar a vida dos profissionais e pacientes é um pequeno sensor elaborado pela healthtech Preveni, de Londrina (PR). Colado sobre o tórax, ele calcula o risco do aparecimento dessas lesões utilizando uma escala que leva em conta fatores que propiciam os ferimentos e emite alertas para que a posição do paciente seja modificada.
A tecnologia, acelerada pelo programa de startups da Samsung Brasil, tem sido implementada em parceria com hospitais de maior porte e que realizam atendimentos de alta complexidade.
De cortes a queimaduras: inovação à flor da pele Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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