quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Não dá mais para separar o bem-estar coletivo do individual

A pandemia de Covid-19 escancara um aspecto importante nas questões de saúde e doença: os níveis de atenção e adesão das populações às medidas preventivas.

Cuidados para evitar doenças envolvem aspectos individuais, como escovar os dentes para prevenir a cárie ou tomar um medicamento à base de iodo para tratar o bócio. E comunitários ou ecológicos, e podemos citar como exemplo as políticas públicas de inclusão de flúor na água tratada e de iodo no sal de cozinha para combater, em larga escala, os mesmos problemas citados anteriormente.

Da mesma maneira, existem riscos à saúde individuais (caso do tabagismo), que convivem com riscos coletivos, a exemplo da poluição atmosférica, e ambos elevam a propensão a problemas respiratórios.

No nosso dia a dia, os aspectos individuais são mais percebidos, ou enfatizados, por serem mais próximos, mas existem situações em que o aspecto comunitário e ecológico fica bem mais evidente: as epidemias são um dos casos mais notáveis.

Lembremos da hipótese de Gaia, que diz que o ecossistema do planeta inteiro pode ser considerado um complexo sistema interagente, que mantém as condições climáticas e biogeoquímicas preferivelmente estáveis. Uma epidemia pode ser representada como um adoecimento agudo de uma comunidade, enquanto uma pandemia é considerada uma doença aguda de toda uma sociedade. Pensando nisso, a vacinação é uma estratégia de controle de doenças no nível ecológico, não apenas no nível individual.

Os riscos ecológicos dificilmente são percebidos sem uma análise mais profunda. O astrônomo Neil de Grasse Tyson, na série Cosmos, lamentava que a poluição da fumaça dos automóveis fosse incolor, pois perceberíamos um risco a mais se ela tivesse uma cor violeta, como ilustrado em um dos episódios da série. Esse mesmo erro de percepção explica como a discussão das vacinas tem sido erroneamente focada no indivíduo, mostrando a imunização como um amuleto pessoal cuja eficácia é debatida por “sommeliers de vacina”.

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Entretanto, o objetivo de uma vacinação em massa não é somente diminuir o número de casos da doença, mas atacar as cadeias de transmissão do vírus, revertendo uma epidemia. Isso está no nível ecológico e é pouco abordado.

A partir do momento em que a incidência começa a cair na comunidade, o vírus vai encontrando cada vez mais dificuldade em conseguir se espalhar. Como uma bola de neve, a vacinação da população e, consequentemente, a redução da transmissibilidade da doença, faz com que o risco de contrair Covid-19 tenha uma queda maior em nível comunitário, num efeito que transborda a eficácia dos imunizantes em si.

Para exemplificar melhor o conceito, me permito fazer uma analogia com o futebol. Um bom jogador é capaz de tomar a bola do adversário fazendo com que ele chute menos ao gol. Mas, quando bons zagueiros tomam cada vez mais bolas, o tempo de posse de bola do time inteiro é aumentado e o do adversário é diminuído.

O número final de chutes a gol do adversário começa a cair bem mais do que aquele que seria devido apenas ao número de jogadas bem marcadas. A vacina é como um bom jogador. Ela tem um efeito a nível individual e outro a nível do time inteiro.

“Mas se eu já tomei a vacina, por que é importante que eu ainda use máscara?”, questionam algumas pessoas. Uma vacina com 50% de eficácia pode ser capaz de reverter uma epidemia, desde que, junto a outras medidas, possa atacar também a transmissibilidade do vírus.

E é também por essa diferença entre o nível individual e o ecológico que não basta vacinar e sair para a rua, pois seu risco de adoecer depende mais do status epidêmico do que apenas da eficácia da vacina individual. Assim, o uso de máscaras e outros cuidados são recomendados até que a incidência da doença caia para níveis não epidêmicos.

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Outra analogia explicativa: o risco de se molhar está muito mais relacionado à força da tempestade do que à eficácia do seu guarda-chuva. Um sujeito pode ter o guarda-chuva com a maior eficácia do mundo, mas, em uma tempestade com ventos fortes, a chance de se encharcar ainda é maior se compararmos essa situação à de um sujeito sem proteção em um dia ensolarado. É até óbvio, né?

Então, o risco de se infectar com uma doença transmissível está mais associado à situação epidêmica do que ao nível de proteção individual. O seu risco individual é proporcional à incidência da doença na comunidade. Em um contexto epidêmico, as máscaras e as vacinas diminuem relativamente esse risco em relação a quem não aderiu a esses cuidados, além de reduzirem a transmissão da doença. Há, portanto, benefícios individuais e coletivos.

O controle final da epidemia está mais ligado a essas medidas coletivas do que às proteções individuais. Em epidemiologia, temos a situação onde máscaras e vacinas conseguem diminuir a transmissão. Isso significa que os nossos “guarda-chuvas” individuais, se usados por todos, têm o bendito e mágico poder de fazer “parar de chover”.

É por isso que a discussão de dispensar o uso de máscara em quem já foi vacinado só ocorre em países onde já se debate se há ou não a ocorrência de transmissão comunitária, ou seja, onde parece que “já parou de chover”, como é o caso da Austrália (parte A do gráfico abaixo). No Brasil (parte B), como se pode ver no mesmo gráfico, cuja escala é 150 vezes maior, essa discussão ainda parece bem fora de questão.

<span class="hidden">–</span>Gráfico: Grupo 3778/Divulgação

* Mauro Cardoso é médico epidemiologista e cientista de dados da healthtech Grupo 3778


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