Estou escrevendo este texto e uma mensagem chega no celular. Preciso retroceder a leitura em alguns parágrafos para retomar o raciocínio. Este é um exemplo, bastante rotineiro, do impacto de como a imersão no mundo digital vem alterando a nossa capacidade de atenção. O relatório We are Social aponta que o número de usuários diários de internet saltou de 2,1 bilhões de pessoas em 2012 para 5 bilhões em 2022.
Pesquisas indicam que brasileiros passam, em média, três horas a mais em redes sociais do que habitantes de outros países. Como isso se expressa na experiência pessoal de cada um? Teríamos nós, sujeitos de 2022, os mesmos sofrimentos mentais do que nossos bisavôs de 100 anos atrás? Diagnósticos de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), burnout e o crescimento de pessoas afastadas do trabalho por questões de saúde mental refletem sintomas e angústias de um cenário próprio do nosso tempo.
Um paciente adolescente, que tinha dificuldade para vir às consultas presenciais (diz que a mãe está ocupada para trazê-lo), adere melhor ao online. Atende minha chamada de sua cama, desliga no fim da sessão e segue com o dia, sem se deslocar até o consultório. Esse paciente diz ter um aplicativo que mostra o tempo em que navega nas redes sociais. No dia anterior, tal medidor apontou que ele tinha passado oito horas no TikTok. Ele diz: “Não é possível, ontem eu fui na escola.” Quando perguntado o que ele via no Tik Tok, responde: “Não sei”.
Quando alguém escolhe olhar para o celular para ver uma mensagem no WhatsApp, podemos considerar que ele usa da sua escolha tão consciente quanto possível para alcançar facilidades oferecidas por uma máquina. Outro cenário, bem diferente, inclui situações nas quais a experiência no universo digital transmite informações do usuário para empresas terceiras.
+Leia também: É burnout ou boreout? O que está por trás de uma crise no trabalho?
Mas o que isso tem a ver com meu paciente adolescente ficar oito horas por dia no Tik Tok?
Quanto mais informação sobre você disponível na web, mais apurados serão os cálculos algorítmicos para que as redes te entreguem conteúdo personalizado e, na outra direção, venda informações mais específicas para anunciantes. Simplificando muito: a estratégia é obter a maior quantidade de dados possível. E como se faz isso? Com mais tempo de tela e engajamento do usuário.
Considerar as extensas horas gastas na internet como sintoma individual é perder de vista o cenário cultural maior em que estamos mergulhados. Existe investimento financeiro considerável das grandes empresas de tecnologia em criar estratégias de engajamento, porque o mercado de informação depende de tempo de tela. O desafio, diante de tudo isso, é pensar como nossas mentes, emoções, pensamentos e relações se transformarão nesse admirável mundo novo.
*Marielle Kellermann Barbosa é psicóloga, psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise, co-founder da Dynami Saúde Mental corporativa e criadora do Podcast Lá Fora (coisas do mundo pelo olhar da Psicanálise).
Como a experiência digital vem modificando o sofrimento mental Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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