Quando o diretor David Fincher anunciou, em novembro, que firmara um acordo de quatro anos de exclusividade com a Netflix, as expectativas eram altas. Desde os anos 1990, o americano comandou filmes célebres, como Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), Clube da Luta (1999) e a Rede Social (2010). Para a plataforma de streaming, Fincher lançou, em 2018, a série Mindhunter, bem recebida pelo público e pela crítica.
Na última sexta (4), um novo filme do diretor entrou no catálogo da Netflix. Mank conta a história do roteirista Herman J. Mankiewicz e dos seus esforços para escrever Cidadão Kane (1941), um dos filmes mais importantes de todos os tempos.
O roteiro de Mank foi concebido há mais de três décadas pelo pai de David, Jack Fincher, jornalista apaixonado por cinema. A história surgiu de uma conversa entre os dois. Jack queria escrever algo sobre a Hollywood dos anos 1930, e o filho sugeriu focar apenas na vida de Mankiewicz, que, assim como o pai, também era jornalista.
Mank só ganhou vida a partir de uma reunião de Fincher com a Netflix, alguns anos atrás. O diretor confessou estar sem ideias para uma terceira temporada de Mindhunter, e a empresa pediu para que ele pensasse, em outro projeto, mais pessoal, similar à Roma, de Alfonso Cuarón (e que ganhou três estatuetas do Oscar em 2019). Foi aí que David sugeriu o filme. Jack, contudo, não viveu o suficiente para ver o seu (único) roteiro nas telas – ele morreu em 2003.
Início de carreira
Mankiewicz nasceu em 1897 em Nova York. Filho de imigrantes alemães (o pai era professor, a mãe, costureira), ele tinha dois irmãos mais novos, Erna e Joseph – que também viria a ter uma carreira de sucesso como cineasta. A família viveu no estado da Pensilvânia, e Herman e se formou em filosofia na Universidade de Columbia, em 1917.
Herman também estudou em Berlim, na Alemanha, onde virou correspondente do jornal Chicago Tribune. Desde aquela época, ele era elogiado pela qualidade de sua escrita. Enquanto trabalhava como jornalista, Mankiewicz enviava também resenhas de teatro para o New York Times.
No início dos anos 1920, Herman colaborou para diversas publicações do EUA – foi o primeiro crítico teatral regular da revista New Yorker. Em 1926, recebeu o convite para trabalhar em Hollywood e se mudou para lá.
Mank foi trabalhar na Paramount Pictures por um bom salário: US$ 400 por semana (o equivalente a US$ 6 mil atuais) mais bônus. Menos de um ano depois, ele já chefiava o departamento de cenários do estúdio. Àquela altura, ele já escrevia e colaborava com roteiros, mas foi na década seguinte que a produção deslanchou. De acordo com o IMDb, o maior banco de dados sobre cinema, Herman participou de ao menos 95 trabalhos como escritor, seja como o autor de todo o roteiro, colaborador ou criando o argumento para as histórias (que, depois, seriam transformados em scripts).
Antinazista
Em maio de 1933, Mankiewicz escreveu o roteiro de uma peça chamada The Mad Dog of Europe (“O Cachorro Louco da Europa”) e o enviou para Sam Jaffe, um amigo do estúdio de RKO que, animado com o texto, tratou de comprar os direitos para adaptá-lo para o cinema.
Naquela época, Hitler já havia se tornado chanceler da Alemanha, mas pouco se falava sobre ele até então. Filho de imigrantes alemães judeus, Mank sabia o que estava acontecendo por lá. The Mad Dog of Europe, justamente, falava sobre o führer de maneira crítica – era o primeiro roteiro de Hollywood a fazer isso até então.
O filme, contudo, nunca saiu do papel. Nos anos 1930, os estúdios de cinema, temendo perder o mercado alemão, evitavam falar (e sobretudo criticar) o nazismo. Havia, inclusive, censores alemães trabalhando em Los Angeles naquela época. Em 1935, quando Mank trabalhava como roteirista na MGM, Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha, notificou o estúdio: se Herman estivesse nos créditos de um filme, o longa não seria exibido por lá.
Em 1938, a Alemanha divulgou uma lista de personas non gratas de Hollywood, e Mank, claro, estava nela. Em 1939, a Segunda Guerra eclodiu – e a censura aumentou ainda mais. Só 20 filmes de Hollywood foram exibidos na Alemanha (a partir daí, filmes críticos ao regime viraram mais recorrentes).
Naquele ano, estreou O Mágico de Oz, filme importante para a história do cinema – e que Mank colaborou com algumas ideias. Herman foi o primeiro roteirista contratado para trabalhar na adaptação do livro infantil de L. Frank Baum, ainda em 1938. Ele entregou uma versão inicial do roteiro de 56 páginas, mas outros escritores também participaram depois, tanto que Mank sequer foi creditado. Mas uma de suas ideias perdurou: foi dele a sacada de fazer com que a parte em que Dorothy está no Kansas fosse em preto e branco, e quando estivesse em Oz, colorida.
Cidadão Kane e problemas
No final dos anos 1930, Mank era um roteirista de sucesso em Hollywood, ainda que não levasse o crédito por muitos de seus trabalhos. O escritor pouco ligava para isso, diga-se. Havia outras coisas que o mantinham ocupado, fora escrever: beber e apostar.
Herman era alcoólatra e jogava compulsivamente. Com o tempo, isso começou a afetar o seu trabalho, como atrasar entregas de roteiro. Mank estava no fundo do poço quando recebeu o convite para escrever o que viria a se tornar sua obra-prima.
Em 1940, Orson Welles, com apenas 24 anos, foi contratado para dirigir um projeto na RKO. Poucos anos antes, ele havia feito sua célebre transmissão de rádio de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, que o fizera popular nos EUA. Welles, então, recebeu carta branca do estúdio para fazer o que bem entendesse, sem supervisão. Hoje, parece algo comum, mas não era: na era de ouro de Hollywood, estúdios e produtores tinham muito mais controle criativo sobre os filmes do que os próprios diretores.
Quando Mank se juntou ao projeto, ele estava se recuperando de um acidente de carro, o qual o deixara de cama, imobilizado. Precisando de grana, ele topou um acordo de US$ 10 mil pelo roteiro (US$ 186 mil hoje) – novamente, sem levar créditos. Herman, então, se isolou em um rancho com mais duas pessoas, que o ajudaram a escrever Cidadão Kane – e a ficar longe da bebida. É neste ponto, inclusive, que Mank, estrelado pelo britânico Gary Oldman, começa. O ator também sofreu com alcoolismo no passado, e usou suas memórias para compor o personagem.
Cidadão Kane conta a história de Charles Foster Kane, magnata americano e dono que dezenas jornais que, em meio a polêmicas em sua vida pública e privada, morre sozinho. O personagem, por sua vez, é inspirado em William Randolph Heart, um ricaço da comunicação do começo do século 20 e que Mank chegara a conhecer.
O filme saiu em 1941, e Herman, que até não se importava em não levar crédito por suas obras, percebeu, com a repercussão do longa, que precisava consertar isso. O roteiro de Cidadão Kane, vale dizer, é lembrado até hoje por sua inovação narrativa: a história se desenrola de maneira não-linear, e o espectador descobre a vida de Kane aos poucos, a partir de noticiários e flashbacks.
Até então, Orson estava recebendo todo o crédito pela obra, mas Mank levou a discussão para o Sindicato dos Roteiristas. Por fim, conseguiu que seu nome figurasse ao lado de Welles na autoria. A conquista veio em boa hora: em 1942, a dupla levou o Oscar de Melhor Roteiro Original – a única estatueta que Cidadão Kane levou naquela noite.
“[Conseguir o crédito] foi importante para ele, e certamente estaria disposto a sacrificar o dinheiro pelo reconhecimento de que havia escrito algo importante, algo de que se orgulhava – o que não tinha acontecido muito”, disse Ben Mankiewicz, neto de Herman, em entrevista à Vanity Fair.
Ben, contudo, não conheceu o avô. Mank morreu em 1953, aos 55, vítima de uremia, uma condição na qual os rins já filtram o sangue direito, o que causa acúmulo de resíduos. Mas sua obra perdurou – e deve continuar assim por um bom tempo.
Quem foi Herman Mankiewicz, retratado em “Mank”, da Netflix Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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