No século 19, os cientistas acreditavam que os caçadores-coletores que viviam na costa brasileira se alimentavam, principalmente, de frutos do mar e outros peixes pequenos. Animais maiores, como os tubarões, só virariam alvo caso chegassem à costa já velhos ou machucados. Essa ideia se manteve por mais de um século, mas foi questionada por uma nova pesquisa, publicada na revista científica Journal of Archaeological Science: Reports.
No estudo, pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostram que os tubarões não eram apenas caçados para alimentação, como também tinham seus dentes utilizados como pontas de flechas, lâminas de barbear, entre outras ferramentas. Além disso, os cientistas sugerem uma motivação social para a caça destes seres perigosos.
As evidências que traçam a relação entre os antigos indígenas e os tubarões datam do período pré-colonial, tendo entre 500 e 700 anos. Parte das amostras, que estavam sendo guardadas no museu da UFSC, eram originárias do distrito do Rio do Meio, em Santa Catarina. Elas foram retiradas do local na década de 1990, quando Rio do Meio estava ameaçado por um empreendimento imobiliário e os arqueólogos tiveram que escavar o espaço para salvar a história.
Foram recolhidas dali ferramentas, peças de cerâmica, fogueiras, restos de criaturas marinhas e também ossos de mamíferos, pássaros e répteis. Analisando os registros do museu, os pesquisadores ficaram curiosos sobre o motivo de haver tantos fósseis de tubarões retirados daquela localidade. No total, eles analisaram 3,9 mil espécimes do peixe, envolvendo dentes e algumas vértebras, que são as partes mais fáceis de serem preservadas, já que o tubarão é cartilaginoso.
Disso, foi possível chegar a 47 tubarões de 15 espécies diferentes, incluindo o tubarão-martelo, tubarão-tigre e tubarão-branco. Todos estes animais ultrapassam os três metros de comprimento e pesam mais de 450 quilos, o que sugere que os antigos indígenas possuíam habilidades suficientes para caçar esses peixes – não sendo, portanto, apenas uma prática pontual. No entanto, os pesquisadores não sabem afirmar qual grupo indígena habitou Rio do Meio e foi responsável pela caça de tubarões.
Mas há um ponto curioso nessa história: os dentes pertenciam aos tubarões grandes, mas a maior parte das vértebras eram de espécies menores ou animais mais jovens. Os pesquisadores sugerem que as vértebras dos pequenos tubarões eram descartadas, enquanto os maiores eram preparados na cozinha ainda com os ossos. A carne do peixão parece ter sido um prato típico da região: os restos de comida encontrados em Rio do Meio sugerem que estes animais constituíam entre algo como 54% da dieta daqueles povos.
Mas será que os tubarões serviam apenas para a alimentação? Para descobrir isso, os pesquisadores realizaram um estudo do desgaste nos dentes, que consiste em analisar se aquele fóssil possui marcas deixadas por atividades específicas. Ao que tudo indica, os dentes foram disparados como flechas, serviram como lâminas de barbear, entre outras funções diversas.
Um estudo anterior, feito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), corrobora com a nova pesquisa. Cientistas já haviam encontrado ossos de tubarões em sambaquis, um tipo de sepultura em formato de morro, que intercala ossos e conchas de moluscos, presente em regiões costeiras. Os esqueletos enterrados ali entre 500 e 8 mil anos levavam adornos feitos com o dente do animal para o túmulo, indicando a prática da caça. Vale ressaltar que nenhum sambaqui foi encontrado em Rio do Meio, sugerindo que a região servia mais como um local de abate e processamento da pesca diária.
Na nova pesquisa, os cientistas sugerem que os dentes encontrados com os mortos não eram apenas colares e outros enfeites, mas também ferramentas feitas com hastes de madeira, que se desintegraram com o tempo. As armas podem ter sido enterradas junto aos caçadores para que eles a levassem na vida após a morte.
Mas por que eles caçariam tubarões com a possibilidade de se alimentar com outros peixes menores? Afinal, lutar com um tubarão não parece tarefa fácil. Além da obtenção dos dentes, os pesquisadores sugerem uma motivação espiritual ou cultural. Contar para a tribo que você caçou um tubarão seria algo significativo e poderia trazer certo status. Os pesquisadores pretendem agora explorar, em novos estudos, esse sentido social da caça.
Carne de tubarão integrava dieta de antigos indígenas do Brasil, diz estudo Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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