Quando comentei com amigos que iria fazer uma aula experimental de crossfit para escrever esta reportagem, as reações foram inusitadas: “Leva o saquinho do golfo”, “Vai levantar pneu de trator, né?”, “Vixe, vai voltar toda quebrada”.
Apesar dos claros exageros, confesso que também estava receosa. Afinal, paira no nosso imaginário aquela ideia de crossfiteiros marombados e viciados em treinar. Certamente aquilo não foi feito para pessoas comuns, como eu ou você.
No entanto, após fazer cinco aulas em diferentes academias de São Paulo, posso afirmar sem medo: a modalidade é, sim, pra gente como a gente. E vou além: fiquei com vontade de fazer mais.
“O crossfit empolga. Estudos mostram que é uma das modalidades em que o praticante se sente mais envolvido, mais estimulado e com senso de comunidade. A galera do crossfit faz a pessoa se fidelizar à prática e não querer parar”, analisa o ortopedista especialista em dor e medicina esportiva Guilherme Noffs, de São Paulo.
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Mesmo carregando preconceitos e visões distorcidas, a atividade é uma das que mais se expandiram pelo país. O número de boxes (os locais de treino, geralmente de portas abertas à rua, são chamados assim) cresceu 5 900% entre 2013 e 2019. E a tendência segue firme. Nosso país já é o segundo no mundo com mais boxes filiados aos criadores do método — são cerca de mil unidades.
Todo ano, em média 1 400 novos boxes abrem pelos cinco continentes. Mas o que exatamente o crossfit tem de diferente para virar esse fenômeno? E é verdade que, apesar do apelo, ele causa bem mais lesões que outras atividades? Para desmistificar a prática, nada melhor que conhecer suas origens.
Crossfit, com “C” maiúsculo, é a marca por trás da metodologia do treino, não um esporte. Não há uma federação de atletas e é provável que ele nunca entre para as Olimpíadas, mas há campeonatos próprios, organizados pela empresa fundadora.
A mente por trás do crossfit é a do americano Greg Glassman, que sofreu, quando pequeno, com a paralisia infantil. Na adolescência, não tendo sucesso em competições de esportes devido a sequelas da pólio, ele viu na ginástica olímpica um horizonte para desenvolver seu corpo. Com o tempo, percebeu que ir para as aulas de ginástica de bicicleta e acrescentar movimentos de levantamento de peso olímpico (LPO) à rotina melhoraram sua forma e rendimento. Nascia a matriz do crossfit, que combina justamente esses três esportes.
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O início não foi fácil para Glassman. Ele foi demitido de várias academias em que tentou aplicar o método, pois colocava os alunos para realizar exercícios em circuitos com pesos livres no lugar dos aparelhos.
Para o professor, dava para ficar forte e aprimorar a aptidão cardiovascular simultaneamente. Pois em 2001 ele resolveu abrir sua própria academia, inaugurando uma comunidade.
“O crossfit foi desenhado por um cara que usou o esporte para minimizar sequelas de uma doença. A modalidade devolve às pessoas capacidades que elas achavam que não tinham, gerando autonomia e um corpo mais funcional”, explica a educadora física Maria Clara Saueia, proprietária do box Crossfit Saurus, na capital paulista, que trabalha com turmas “master” (acima de 50 anos) e “kids” (crianças de 3 a 10 anos).
No fundo, o crossfit é um tipo de treino funcional, com grande variação de movimentos e em alta intensidade. Uma combinação que pode ser ótima para a nossa saúde.
“Movimentos funcionais são aqueles em que você transfere um aprendizado motor para a vida. Tudo no nosso cotidiano depende do trabalho de múltiplos músculos e articulações, e você treinar esses grupos ajuda na criação e na manutenção do condicionamento físico”, esclarece o personal trainer Joel Fridman, dono do primeiro box de crossfit do país, o CrossFit Brasil, fundado em 2009 em São Paulo.
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Realmente: “agachamento” nada mais é que um treino para sentar, levantar e ficar de pé sem problemas. Fazer um “levantamento terra”, que recruta a região lombar, pernas e glúteos, melhora sua capacidade de pegar coisas do chão. Erguer um halter em cima da cabeça mexe com as estruturas do corpo que nos permitem colocar um livro na estante.
Mas, se apenas treinar esses movimentos seria o suficiente para melhorar nossa performance nos gestos do dia a dia, por que o crossfit exige ações como o snatch (ou arranco, em português), algo que requer técnica difícil para não se machucar?
“Quanto maior a complexidade do movimento, maior a demanda para o sistema nervoso, maiores as adaptações no corpo e o desenvolvimento de músculos, da coordenação e da capacidade cardiorrespiratória”, expõe Fridman.
“Diversas pesquisas mostram que o snatch, além de trabalhar a flexibilidade do ombro, a estabilidade da coluna e a força na perna, ajuda a melhorar a coordenação de outros tipos de movimento. Quanto mais difícil, mais benefícios traz”, conclui o professor.
Além disso, conseguir fazer algo desafiador proporciona satisfação e motivação. Quando consegui fazer meu primeiro arranco do jeito certo, depois de muitas tentativas fracassadas, senti a endorfina pelo corpo — um misto de bem-estar e vontade de aprimorar a execução.
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E aqui chegamos a um ponto importante: sim, o crossfit é uma metodologia que exige movimentos técnicos e bem-feitos.
“Ele é seguro, mas complexo. Pode ter impacto, mudança brusca de direção e, às vezes, até movimentos de torção. Você precisa ter uma técnica apurada, porque, quanto maior a intensidade do treino, maior o risco de errar na técnica e se lesionar”, explica o ortopedista Jan Sprey, professor da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e praticante de crossfit. Daí vêm os receios de quem nunca se aventurou por um box.
Sempre que pensamos em trabalho físico, envolvendo músculos e articulações, existem variáveis que precisam ser consideradas para ganhar segurança. São elas velocidade, amplitude de movimento, carga, repetições e descanso. Embora venha por último, o repouso também é peça-chave; ora, todas as demais ações costumam estressar o organismo.
“O crossfit requer grande velocidade e amplitude. Por isso, é importante dosar bem a carga e as repetições para não se machucar”, observa Noffs. “Sentir quando é hora de parar também é função do treinador. Ele deve perceber que a técnica do aluno já caiu e o melhor é não continuar”, pontua o médico.
Dentro da metodologia, apenas pessoas capacitadas com o curso nível 1 da Crossfit — oferecido pela própria marca — podem dar aulas. Mas esse curso de formação vai até o nível 4, preparando os coaches não apenas em questão de técnica mas também em didática e segurança. No Brasil, é exigido que os treinadores sejam também graduados em educação física.
“A Crossfit tem cursos de formação, mas as aulas ficam na mão do coach. Então, inevitavelmente você vai ter uns boxes de melhor qualidade que outros”, afirma Sprey.
Nesse sentido, o médico e praticante da modalidade vai além. “Treinadores com mais estudo e preparo, a partir do nível 3 de formação da Crossfit, por exemplo, passam por uma espécie de “controle de qualidade” bem mais rígido, estando mais aptos para a função de ensinar e orientar”, diz Sprey.
De qualquer forma, o instrutor com boa didática e capaz de acompanhar de perto os alunos, corrigindo seus movimentos, é fator crucial para que eles evoluam no treino e fiquem menos vulneráveis a lesões.
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E aí ouvimos a pergunta que não quer calar: crossfit machuca mais que outras atividades esportivas? A resposta é simples, mas categórica: se praticado da forma correta, não.
Há ciência por trás dessa afirmação. Uma revisão de 65 pesquisas sobre o tema, feita pelo Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), constatou que o risco de lesão a cada mil horas praticadas é baixo — varia de 1,9 a 3,1. No futebol, para ter ideia, esse número salta para 7,8.
Sprey também investigou o assunto em seu mestrado. Ele entrevistou 600 praticantes de crossfit pelo Brasil e concluiu que apenas 31% deles haviam sofrido alguma lesão desde o início dos treinos. A mesma taxa no futebol pula para 70%.
Mesmo assim, não é absurdo julgar o crossfit como uma prática associada a lesões quando não se conhece a rotina de um box. O primeiro fator a contribuir para essa imagem é a experiência de vida e redes sociais: com frequência, há algum amigo ou conhecido crossfiteiro de molho.
Mas sejamos justos aqui. Boa parte dessa turma treina seis vezes na semana. “Levando em conta a mesma quantidade de horas praticadas, o crossfit não lesiona mais que outras modalidades. Mas, como é empolgante, as pessoas fazem com maior frequência que outros esportes e a lógica é ficarem mais expostas a lesões. A culpa não é da modalidade em si”, argumenta Noffs.
Outra razão por trás dessa imagem equivocada vem de um estudo de 2013, que chegou a calcular que o índice de machucados na metodologia superava os 70%. Na época, com a febre do crossfit se disseminando, o artigo científico caiu como uma bomba.
Mas se descobriu que a pesquisa possuía vários erros metodológicos, gerando números nos quais não dava para confiar. A marca Crossfit processou os autores e ganhou.
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De forma geral, quem se lesiona praticando a modalidade ou são atletas de alta performance, que treinam para superar seus limites e competir em campeonatos, ou iniciantes que vão com muita sede ao pote.
Quem é novato no box precisa de bastante paciência e orientação para avançar na aprendizagem. “Numa academia, as máquinas minimizam as chances de errar um movimento, que já é mais simples. No crossfit, são exercícios livres e mais complexos, que dependem de boa postura, coordenação e supervisão”, compara o ortopedista Marcos Vaz de Lima, chefe do Grupo de Traumatologia do Esporte da Santa Casa de São Paulo.
Alguns boxes oferecem aulas exclusivas para ensinar o bê-á-bá dos movimentos aos iniciantes antes de eles se juntarem às aulas em grupo. Mas, para aqueles que vão direto para as sessões coletivas, dois recados são valiosos: explique seus limites ao coach e não queira se equiparar aos demais.
Em uma das aulas a que fui, por exemplo, o circuito envolvia fazer um exercício que mescla bananeira com flexão de braço, algo impensável para mim. Mas o coach me passou uma versão adaptada que consegui realizar, me integrando à aula.
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Não existe contraindicação formal para o crossfit, e, nas diversas voltas que dei pelos estabelecimentos, vi praticantes grávidas, idosos e com deficiência física. Para treinar sem se machucar, no entanto, é essencial conhecer seus limites e se desafiar sem extrapolá-los, além de escolher um bom box.
“O treinador precisa saber como não colocar o aluno iniciante em risco, principalmente usando baixas cargas. Existem estratégias para isso”, diz Fridman, que está nesse mercado há dez anos.
Luiz Martins, educador físico e dono do box Hangar193 Crossfit, em São Paulo, conta que essa comunidade acredita que condicionamento é sinônimo de saúde.
E o professor colocou a própria mãe, de 67 anos, para aprender e praticar. “As pessoas temem ser perigoso, mas muito idoso está em casa sozinho, fazendo os mesmos movimentos que faria aqui, só que com fraqueza e limitações. Isso, sim, é um perigo real”, reflete o instrutor.
A explosão do crossfit Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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