sexta-feira, 24 de junho de 2022

Saiba como se formou o “Poço Encantado”, no centro da Bahia

Este é o décimo quinto texto do blog Deriva Continental, escrito por Ricardo Fraga Pereira, Jailson Santos e Joane da Conceição.

A Chapada Diamantina não carrega esse nome à toa. No século 19, a região localizada no centro da Bahia foi um importante polo de extração de diamantes. Ao longo do século 20, essa atividade diminuiu – e hoje a extração mecanizada é proibida.

Mas a extração de diamante deixou um legado importante: inúmeras trilhas garimpeiras, que hoje são a porta do turismo na região. Muitas delas levam às cavidades naturais subterrâneas, como Gruta da Lapa Doce, Gruta da Pratinha, Gruta da Paixão, Gruta dos Brejões, Gruta da Torrinha, Poço Azul, dentre outras.

Mas uma gruta se destaca pela presença de um fenômeno luminoso curioso, que ocorre entre abril e setembro. Nessa época do ano, um feixe de luz solar entra pela boca da cavidade da gruta e atinge o lago no seu interior, fazendo com que a luz sofra refração nas águas cristalinas. Estamos falando do Poço Encantado, que recebe mais de 12 mil visitantes por ano.

<span class="hidden">–</span>Sociedade Brasileira de Geologia (SBG)/Divulgação

Como se formou a Gruta do Poço Encantado?

As cavidades naturais subterrâneas, também conhecidas como grutas ou cavernas, são formadas por processos que atuam na dinâmica terrestre ao longo do tempo geológico. No Brasil, a maior parte dessas cavidades foram formadas nos últimos 66 milhões de anos, pela ação das águas que dissolvem lentamente as rochas abaixo da superfície terrestre.

Quando chove, a água penetra o solo e vai em direção aos aquíferos. Durante esse caminho, a água se mistura com o gás carbônico da atmosfera e com os ácidos orgânicos formados pela decomposição da matéria orgânica. Essa mistura se torna uma solução acidificada que circula pelo subsolo até atingir um maciço rochoso. Daí, ela penetra nas fissuras e poros presentes na rocha, atinge o lençol freático e começa a dissolver esse maciço, abrindo uma trama de vazios e condutos que, no final das contas, dão origem às cavernas.

<span class="hidden">–</span>Vitor Moura/Divulgação

Geralmente, esse processo ocorre de maneira mais rápida e acentuada nas rochas carbonáticas: calcários, dolomitos e mármores, já que são as rochas ricas em minerais solúveis – como a calcita (CaCO3) ou a dolomita (CaMg(CO3)2).

Daí é só ligar os pontos: se as rochas carbonáticas são mais sensíveis a esse processo geológico, a maior parte das cavernas conhecidas no Brasil são formadas nesse tipo de rocha. É o caso do Poço Encantado. As rochas carbonáticas têm uma cor cinzenta e esbranquiçada, e podem ser observadas nas paredes da gruta. Elas efervescem quando entram em contato com um ácido forte, como o ácido clorídrico.

O Poço Encantado (e outras grutas instaladas em rochas carbonáticas) são parte de um tipo de relevo chamado carste. Terrenos cársticos cobrem mais de 20% das terras emersas do planeta. Nesses terrenos o relevo é formado pelo colapso da trama de condutos e cavidades que se desenvolvem no meio subterrâneo.

Nas demais paisagens terrestres, o relevo é formado pelo entalhamento vertical dos rios e recuo lateral das vertentes, enquanto no carste o relevo é formado de dentro para fora do maciço rochoso, pelos sucessivos abatimentos das cavidades subterrâneas. Essas cavidades, por sua vez, foram formadas pela dissolução da rocha por ação das águas subterrâneas, ao longo do dinâmico e vagaroso Tempo Geológico.

Ao descer a escadaria que dá acesso à gruta do Poço Encantado, você está descendo por uma depressão de formato quase circular e fechada por todos os lados. Trata-se de uma feição de relevo típica do carste e conhecida como dolina. Na parte escura da caverna, percebe-se que ela possui um conjunto de salões amplos – alguns com teto mais alto, como é o caso do salão onde está o lago subterrâneo, mas também alguns com teto mais baixo e também alguns salões com um aspecto labiríntico.

<span class="hidden">–</span>Sociedade Brasileira de Geologia (SBG)/Divulgação
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<span class="hidden">–</span>Ezio Luiz Rubbioli - Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas/Divulgação

Ao contemplar o lago subterrâneo, com profundidade de até 60 metros, observa-se o aspecto recortado do teto e os blocos abatidos no fundo do lago. Esse lago representa um afloramento do lençol freático, e tem variações de até 1,5 metros no nível da água ao longo do ano.

<span class="hidden">–</span>Almir Brito/Divulgação

Os recortes presentes no teto e os blocos no fundo do lago evidenciam os eventos de abatimentos, ocorridos ao longo do Tempo Geológico e que acompanharam o rebaixamento lento e progressivo do lençol freático. Nas partes superiores, os salões menores e labirínticos ilustram como deveria ser a antiga trama de condutos formados pelas águas subterrâneas e que foram colapsando pelo rebaixamento das águas.

Com todos esses abatimentos no meio subterrâneo, parte da superfície também acabou colapsando, formando a depressão circular e fechada – a tal dolina que descemos para adentrar o Poço Encantado. A cavidade e relevo em seu entorno são objeto de estudos que ainda poderão revelar partes desconhecidas da história geológica.

Um pouco da história da Chapada Diamantina

A Chapada Diamantina ocupa a parte central do Estado da Bahia e se estende por mais de 300 km de norte a sul, e mais de 150 km de leste a oeste. Ao longo dessa região afloram rochas que se formaram entre 1,77 bilhões e 670 milhões de anos atrás. Esses pacotes rochosos sustentam serras, planaltos e relevos cársticos, como aquele onde se insere o Poço Encantado.

<span class="hidden">–</span>Almir Brito/Divulgação

Todo esse conjunto de rochas foi depositado em uma bacia sedimentar, que consiste em uma depressão formada na superfície da Terra, delimitada por planos de rupturas da crosta terrestre (falhas), e que são formadas em decorrência de fenômenos que ocorrem, em sua maioria, no interior do planeta. Na medida que essa depressão evolui, ao longo do Tempo Geológico, ela vai sendo preenchida por detritos (sedimentos) que são trazidos por rios, desertos, geleiras ou mares. Todos esses agentes já passaram por ali e deixaram evidências notáveis de antigos ambientes de sedimentação que já ocuparam a região.

Há 1,77 bilhões de anos atrás, as massas continentais da Terra possuíam uma configuração bem distinta da que existe hoje. Em um pequeno fragmento continental da crosta terrestre, processos geológicos associadas com a dinâmica interna da Terra deram origem à uma bacia sedimentar onde ocorreram atividades vulcânicas e foram depositadas as rochas que hoje sustentam as serras e demais unidades do relevo da Chapada Diamantina. Com esse rebaixamento progressivo da crosta, um mar antigo invadiu e deixou ali um pacote de sedimentos marinhos. Passado algum tempo, esse rebaixamento da crosta diminuiu e a pilha de sedimentos depositados deixou esse mar cada vez mais raso.

A partir daí, deltas e sistemas fluviais se instalaram por ali e preencheram essa depressão. Em paralelo, esse fragmento da crosta seguia à deriva pela Terra até que, com a bacia preenchida de sedimentos, se instala um amplo deserto, antes mesmo de existirem plantas na Terra. Em meio a esse deserto, os vulcões marcam uma nova atividade nas falhas que delimitam as bordas dessa bacia sedimentar e que denotam um novo momento de afundamento da crosta. A partir daí, um outro mar avança sobre a pilha de sedimentos e logo preenche a bacia, dando lugar a novos sistemas fluviais.

Enquanto tudo isso acontece, o fragmento continental que abriga essa bacia sedimentar segue em deriva, enquanto distintas condições climáticas se instalam sobre ele. Entre 850 e 630 milhões de anos atrás, a Terra resfria, e um fenômeno global conhecido como “Terra Bola de Neve” faz com que, praticamente, todas as partes continentais emersas em nosso planeta sejam cobertas por geleiras. Passado algum tempo, essas geleiras derretem, o nível dos mares sobe, toda a região fica coberta por um mar extenso e raso, onde são depositadas as rochas carbonáticas nas quais, algumas centenas de milhares de anos depois, se formou a gruta do Poço Encantado.

Depois da deposição das rochas carbonáticas nesse extenso mar e antes da formação da Gruta do Poço Encantado, todo esse pacote rochoso foi soerguido, quando o fragmento continental denominado de Paleocontinente São Francisco – Congo (onde estava a bacia que deu origem à Chapada Diamantina) chocou-se com outros continentes para formar aquilo que, milhares anos mais tarde, viria a ser o supercontinente de Gondwana. Todo esse pacote rochoso deixou de afundar na crosta e passa a sustentar serras, planaltos, planícies e terrenos cársticos.

Cuidados e conservação do local

O Poço Encantado abriga informações importantes para compreender a evolução do planeta e, por isso, ele é parte do nosso Patrimônio Geológico. Sua proteção e conservação são necessárias para que todo esse conhecimento não seja perdido.

No caso do Poço Encantado, suas águas ainda abrigam uma espécie de bagre cego endêmico, o Rhamdiopsis krugi. Trata-se de um peixe albino, sem pigmentos na pele e sem olhos, que atestam que ele se adaptou, há milhares anos, para habitar um ambiente desprovido de luz. Desse modo, esse bagre consiste em um registro importante da evolução animal em cavernas que reforça a necessidade de proteção desse sítio geológico.

Há mais de 20 anos o guia Miguel, morador do local, assumiu os cuidados com esse sítio geológico, se tornou o guardião do lugar, organizando a infraestrutura de acesso e a visita ao Poço Encantado.

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