quinta-feira, 16 de junho de 2022

Pesquisa revela os desafios dos brasileiros que convivem com o Alzheimer

No mundo todo, cerca de 55 milhões de pessoas vivem com algum tipo de demência, sendo a doença de Alzheimer a mais comum, atingindo sete entre dez indivíduos nessa situação. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS), que alerta para uma tendência de aumento preocupante nos números com o envelhecimento da população.

O Brasil não foge à regra, e as estimativas atuais apontam quase 2 milhões de cidadãos com a condição em seus diferentes estágios: do comprometimento cognitivo leve, quando as falhas na memória e outros sintomas ainda não atrapalham tanto as atividades, ao quadro grave, quando não se reconhece quem está ao redor e se perde a autonomia.

Para entender o impacto dessa doença progressiva e sem cura no dia a dia de quem sofre com ela e no seu entorno, VEJA SAÚDE realizou, com o apoio da farmacêutica Biogen e de seis entidades de suporte aos pacientes, a pesquisa Os Desafios do Alzheimer no Brasil.

Ela contou com 1 080 participantes de todas as regiões do país, e a maior parte da amostra é formada por familiares que assumiram o papel de cuidadores. Participaram da elaboração e do recrutamento para o estudo as seguintes instituições:

<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital

Lacunas a favor da doença

“No Brasil, infelizmente, alguns fatores associados a uma maior prevalência de demência são muito frequentes, entre eles a baixa escolaridade”, contextualiza o neurologista Paulo Caramelli, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No levantamento, de fato, é possível verificar que quase 35% dos que vivem com Alzheimer nunca foram à escola, são analfabetos ou têm o ensino fundamental incompleto.

Os anos na sala de aula fazem diferença porque ajudam a forjar e sedimentar conexões entre os neurônios, formando uma reserva cognitiva capaz de postergar o desenvolvimento e as manifestações da doença por trás de esquecimentos cada vez mais frequentes — aliás, “esquecimento” foi a palavra mais associada ao problema pelos respondentes.

“As lesões cerebrais provocadas pelo Alzheimer têm início décadas antes de surgirem os lapsos de memória”, esclarece o neurologista Rodrigo Schultz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ao longo desse período, vão se acumulando entre os neurônios proteínas como a beta-amiloide e a TAU, cujo depósito leva à destruição de sinapses e células — e, consequentemente, das funções cognitivas.

“Estudos mostram que alterações de comportamento podem até preceder as queixas de esquecimentos”, nota Ivete Berkenbrock, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). “Irritabilidade, dificuldade em encontrar palavras no meio de uma conversa, desorientação espacial e temporal são sinais que devem ser levados em conta na avaliação para o diagnóstico de Alzheimer”, completa a geriatra.

De acordo com os entrevistados, na maior parte das vezes as primeiras manifestações do Alzheimer são percebidas pelos filhos ou pelo companheiro da pessoa afetada. Ao buscar ajuda profissional, porém, nem sempre as falhas na cognição são valorizadas pelo médico: quatro em cada dez brasileiros ouviram, em uma consulta inicial, que as queixas poderiam estar relacionadas a estresse ou seriam normais da idade (o que não é verdade).

Desse grupo, 42% não foram encaminhados para especialistas ou submetidos a testes e exames para descartar outras causas. A situação é mais grave entre aqueles atendidos no Sistema Único de Saúde (SUS).

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“O diagnóstico de demência depende primordialmente de uma entrevista adequada com o paciente e um familiar ou alguém com quem ele convive”, pontua Caramelli. “Essa etapa pode ser complementada com uma avaliação de desempenho cognitivo, envolvendo memória, atenção e habilidades de linguagem, além de uma investigação funcional. Existem questionários padronizados e validados para esse fim”, informa o neurologista.

E aí está um dos grandes gargalos responsáveis pelo atraso na confirmação da doença. Muitos médicos têm formação insuficiente para fazer a abordagem correta, e muita gente não tem acesso aos doutores devidamente capacitados. O resultado é uma demora de no mínimo um ano para fechar o diagnóstico, realidade vivida por 40% da amostra do estudo.

“Embora haja uma preocupação crescente com treinamento, profissionais da atenção primária, a porta de entrada do SUS, não costumam estar habilitados para fazer o encaminhamento quando há suspeita de demência. E o cenário é bastante heterogêneo pelo país”, avalia a presidente da SBGG.

“No sistema privado, como se acessa direto o especialista, é possível encurtar um pouco esse caminho”, afirma Elaine Mateus, presidente do Instituto Não Me Esqueças.

<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital

No rastro do Alzheimer

O caminho para o diagnóstico do Alzheimer começa com a história de declínio da memória ou alterações comportamentais. O passo seguinte é fazer exames para afastar outras causas prováveis dos sintomas, como distúrbios de tireoide, escassez de vitamina B12 e depressão.

Imagens de ressonância magnética podem ajudar a cravar o resultado, assim como a análise do líquor — mais restrita e não fornecida pelo SUS —, que mede os níveis das proteínas TAU e beta-amiloide no sistema nervoso.

Recentemente, chegou ao país o primeiro exame que detecta traços de beta-amiloide numa amostra de sangue. Menos invasivo, é usado para eliminar dúvidas sobre o diagnóstico em pessoas com sinais de déficit cognitivo leve que pode evoluir para Alzheimer.

Carências e sobrecargas

Para um quarto dos respondentes do estudo, mesmo depois de confirmado o Alzheimer, faltam explicações e orientações a respeito da evolução do quadro e do tratamento. Não raro, os familiares se sentem perdidos e angustiados.

“O médico precisa gerenciar todo o planejamento terapêutico, considerando que muitos pacientes vão ser acompanhados por dez anos ou mais e serão necessárias adaptações a cada etapa da doença, o que afeta diretamente os cuidadores”, descreve Ivete.

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Só que o desconhecimento gera falta de acolhimento, deixando pacientes e cuidadores isolados em um momento delicado. “Um dos trabalhos mais importantes das associações voltadas a essa comunidade é o de fazer com que informações confiáveis cheguem de maneira simples e clara para todos”, defende Elaine.

Enfermeira especializada em gerontologia e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fábia Lima conta que não basta cuidar do paciente: é preciso olhar para o cuidador. “Chama atenção na pesquisa que boa parte desse grupo tem mais de 60 anos. São idosos cuidando de idosos, como constatamos também no ambulatório do hospital onde trabalho”, comenta.

Sobrecarregados com a rotina, eles vivem sob estresse físico e psíquico, sobretudo com a progressão da demência. Não é à toa que mais de 70% dos cuidadores ouvidos afirmam sentir repercussões da atividade em sua própria saúde mental.

“Dependendo da fase, a pessoa sob sua responsabilidade se recusa a tomar banho, ou esquece que comeu e reclama por não ter sido alimentada, ou fica irritada ao não conseguir mais realizar suas tarefas. Se o cuidador consegue compreender o processo da doença, passa a entender e aceitar melhor esses comportamentos, diminuindo a carga emocional da função”, expõe Fábia.

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O estudo de VEJA SAÚDE evidencia que o manejo da doença de Alzheimer abala também a vida financeira das famílias. Como quase sempre quem assume os cuidados são os filhos, o parceiro ou outros parentes, é considerável o impacto na carreira e na economia doméstica.

Além dos custos com consultas, exames, deslocamentos e medicamentos, 40% dos cuidadores tiveram que diminuir ou parar suas atividades remuneradas, reduzindo a renda da casa. E o duro é que, na visão deles, apesar de tantos esforços, o tratamento prescrito não é satisfatório.

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Dificuldades do tratamento

“O plano terapêutico contra o Alzheimer hoje se baseia em duas classes de medicamentos. Uma delas são os inibidores de colinesterase, uma enzima no cérebro que inativa um neurotransmissor importante para a memória”, conta a neurologista Sonia Brucki, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

“Outro grupo é o da memantina, que atua em um neurotransmissor implicado em diversas funções cerebrais e foi testada para as fases moderada e grave da doença”, complementa Caramelli. Os especialistas esclarecem que esses remédios ajudam a atrasar a progressão do problema, deixando a pessoa funcional o maior tempo possível. Mas não brecam totalmente nem revertem as perdas cognitivas.

Na pesquisa, é significativo o percentual de insatisfação com o tratamento na percepção dos entrevistados. “A família tem às vezes a expectativa de que a doença vai regredir, o que não é verdade”, relata Sonia. Por ora, não existem medicações disponíveis no país que, como os médicos dizem, “mudam o curso da doença”.

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Ivete explica que há protocolos para fornecimento dos remédios no sistema público, mas a questão é que faltam centros de referência e equipes de apoio multiprofissional pelo Brasil. “O tratamento não farmacológico é essencial e envolve estratégias de diferentes disciplinas para minimizar os impactos da demência”, afirma Schultz.

O fonoaudiólogo, por exemplo, atua nos casos em que há uma dificuldade de comunicação ou de deglutição de alimentos. O estímulo cognitivo pode ser orientado por terapeutas ocupacionais. Educadores físicos indicam atividades de acordo com o perfil e as limitações de cada um, enquanto o aconselhamento psicológico trabalha aspectos emocionais e comportamentais e a enfermagem orienta o esquema de uso e os horários dos medicamentos.

Só que pouca gente tem acesso a esse pacote completo. “Vivemos diferentes realidades em relação ao apoio especializado e multidisciplinar, principalmente na rede pública”, atesta Elaine. Não por menos, 77% dos entrevistados acreditam que o Brasil não esteja preparado para lidar com os desafios do Alzheimer — opinião fundamentada no que consideram falhas no acesso a experts, medicações e cuidados complementares.

“O Alzheimer é uma doença da sociedade. Precisamos construir uma cultura mais inclusiva, promover ações em prol da pessoa com demência e de suas relações sociais. Formar pequenas comunidades, do porteiro do prédio aos membros das igrejas, todos voltados à qualidade de vida de pacientes, familiares e cuidadores”, defende a líder do Não Me Esqueças.

De fato, essa é uma demanda urgente. E que não pode ser esquecida.

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Promessas terapêuticas

Na busca por interromper ou mesmo reverter a progressão do Alzheimer, a ciência vem apostando nos anticorpos monoclonais, classe de medicamentos injetáveis que reconhecem e atacam alvos específicos no organismo. “Eles visam à remoção das duas proteínas que se depositam no cérebro de forma anômala, a beta-amiloide e a TAU”, descreve Sonia.

As medicações se ligam a essas proteínas com o intuito de fazer uma limpeza na área — e impedir a evolução do quadro e seus danos cognitivos. Um dos fármacos, aprovado para uso nos Estados Unidos, demonstrou eficácia no controle da beta-amiloide em pessoas com Alzheimer leve — e já foi submetido à agência regulatória brasileira. “Nessa linha de drogas modificadoras da doença, existem centenas de moléculas em investigação”, diz Schultz.

 

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