Você já se perguntou por que dormimos? Por que passamos um terço de nossa vida de olhos fechados?
Bem, como todo processo natural no organismo, o repouso noturno desempenha tarefas essenciais para a saúde: renovar a energia, fazer manutenções pelo corpo e consolidar a memória.
O sono é um estado de repouso físico e mental, em que ocorre um período de inconsciência total ou parcial. É nessa calmaria que as nossas células aproveitam para se regenerar, absorver informações e fazer uma faxina geral.
Enquanto dormimos, o organismo descarta células mortas e se livra de uma porção de detritos, que, ao se acumular, podem provocar doenças. Diversos sistemas, como o nervoso e o imunológico, utilizam essas horas de paz para se organizar e estarem prontos para o serviço quando a pessoa despertar. Sem isso, não vamos em frente!
“Ainda precisamos derrubar a impressão generalizada de que dormir é perda de tempo”, afirma o cardiologista Luciano Drager, presidente da Associação Brasileira do Sono (ABS). “Dormir é fundamental para a vida, e algo que se deve respeitar”, completa.
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Infelizmente, o sono do brasileiro anda ruim, para não dizer sofrível. Um novo estudo, publicado no periódico Sleep Epidemiology, calcula que 66% da população do país (cerca de 130 milhões de pessoas) dorme mal. As mulheres são as mais afetadas: apresentam um padrão de sono até 10% pior do que o dos homens.
Para medir a qualidade do descanso noturno, a pesquisa usou quatro critérios: duração (quantidade de horas dormidas), regularidade (se acorda durante a noite ou não), alcance dos estágios do sono (leve, profundo e REM) e satisfação pessoal (se o indivíduo sente que dorme o suficiente para ficar bem).
É fato que muita gente vive uma privação intencional de sono. Seja por necessidade, seja por achar que sono é perda de tempo, o sujeito reserva poucas horas para o encontro com o travesseiro. Mas um problema que vem atingindo cada vez mais cidadãos é a insônia: a pessoa quer dormir, mas não consegue.
“É um distúrbio que se caracteriza pela dificuldade para iniciar o sono, manter o sono durante a noite ou despertar muito antes do normal, sem conseguir voltar a dormir”, define a neurologista Dalva Poyares, do Instituto do Sono, em São Paulo. “Para o diagnóstico, isso deve estar se repetindo pelo menos três vezes por semana por no mínimo três meses, levando a consequências como fadiga, irritabilidade e redução do desempenho”, finaliza.
Os números nesse sentido são preocupantes. De acordo com levantamento da Sanofi Consumer Healthcare, sete em cada dez brasileiros encaram problemas para dormir. E mais da metade não procura ajuda especializada. Não é à toa que o mercado de soluções em prol do sono só cresce. Ele engloba de melatonina, recém-liberada no país, a fitoterápicos e medicamentos tradicionais. Mas o que resolve a insônia?
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Antes de tudo, é importante compreender o que acontece no corpo que nos leva ao sono — e à falta dele. Nosso organismo não é um interruptor que liga e desliga quando quer, pois funciona em ciclos regidos por sinais bioquímicos.
Um deles é o famoso ciclo circadiano, vulgo relógio biológico, que está diretamente ligado ao dia e à noite. Esse cronômetro interno existe em praticamente todos os seres vivos e é responsável por regular a hora de acordar, o ritmo das atividades e o momento de dormir.
De forma resumida, nos humanos a luz do amanhecer provoca um aumento na quantidade do hormônio cortisol no sangue, e isso nos faz despertar. À medida que a luz natural diminui, inicia-se a produção de melatonina, outro hormônio. É ela que sinaliza ao corpo que está escuro e arma o terreno para pregarmos os olhos.
“Além de a melatonina preparar o organismo para o sono, todos os demais mecanismos fisiológicos típicos do repouso são disparados por ela, como a regulação da pressão arterial, da temperatura corporal e do sistema imunológico”, explica o médico José Cipolla Neto, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).
“As diversas modificações necessárias para o nosso organismo repousar e jejuar são acionadas por esse hormônio. É uma molécula complexa que lida não apenas com o sono, mas com todo um estado fisiológico”, reforça.
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Mas como a falta de sono entra na história? Está faltando melatonina no pedaço? Na grande maioria das vezes, não.
“Existem várias causas para a insônia, como fazer uma má higiene do sono, passar por momentos de crise, como se viu muito agora com a Covid-19, ou apresentar outro distúrbio do sono associado”, esclarece a biomédica Monica Andersen, diretora do Instituto do Sono.
“Nem sempre é fácil identificar o motivo. Existem fatores genéticos por trás, além de casos em que a pessoa tem uma ótima higiene do sono e, mesmo assim, não consegue dormir. Tudo isso precisa ser levado em conta pelo especialista para fazer o diagnóstico”, completa.
Aí está o xis da questão. Lembra que a pesquisa da Sanofi mostrou que mais da metade dos brasileiros que penam para dormir não procura o médico? A primeira saída costuma ser buscar algum chá ou remédio direto na farmácia.
Quem surfa essa onda hoje é a versão sintética da melatonina, liberada para comercialização nas drogarias pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no fim de 2021. Antes só importado ou comprado em farmácias de manipulação, o “hormônio do sono”, em cápsulas ou gotas, está com a demanda em alta.
“Mas melatonina não é sonífero. Embora a Anvisa a classifique como suplemento alimentar, ela não é uma molécula inócua e pode gerar efeitos colaterais. Não se toma um hormônio sem indicação médica, e com a melatonina não deveria ser diferente”, avalia Cipolla Neto.
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A melatonina sintética tem um papel a cumprir e pode ajudar algumas pessoas a entrar mais facilmente nos domínios do sono, mas não representa a “cura” da insônia nem deve ser utilizada sem prescrição.
Só que isso acaba acontecendo porque realmente há uma febre pelo suplemento: só nos Estados Unidos, cerca de 6 milhões de pessoas fazem uso regular, 90% delas sem receita médica. Mas o abuso não passa em branco. Estudos já o associam a episódios de tontura, náusea, cólicas, sonolência em momento inoportuno, ansiedade etc.
O pedido de atenção é ainda mais incisivo no que se refere a crianças, muitas delas com dificuldades (naturais ou não) para dormir. Segundo análise do Hospital Infantil de Michigan, o número de pequenos acidentalmente intoxicados por melatonina aumentou 500% nos EUA entre 2012 e 2021.
E há quem se preocupe que algo similar possa acontecer no Brasil. “O excesso de uso dos pais, deixando o produto disponível em casa, é um risco para as crianças. Muitos suplementos de melatonina vêm em forma de balinha mastigável, o que é superatrativo para elas”, nota a médica Ana Jannuzzi, pós-graduada em pediatria e estudos do sono.
“Mesmo não estando liberada para menores de 19 anos aqui no país, sabemos que há chance de que os próprios pais deem melatonina aos filhos achando que não há problema algum”, continua a profissional do Rio de Janeiro.
Ana enfatiza que a maioria das crianças não tem carência desse hormônio e não há estudos de longo prazo avaliando a segurança e eficácia da melatonina para os mais novos.
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Ah, mas um chá calmante não seria uma boa ideia para dormir com os anjos? Veja bem, não há estudos de grande porte batendo o martelo sobre a ação de infusões — fora a falta de padronização entre ervas e extratos.
Em relação aos fitoterápicos, alguns até podem ajudar, caso da passiflora, mas eles contribuem para relaxar e resolver dificuldades temporárias para pegar no sono. Não vencem uma insônia pra valer.
Puxa, mas o que é recomendável e tem aval da ciência para subjugar esse distúrbio tão em evidência? A primeira medida é a já citada e tão falada higiene do sono, frequentemente ignorada.
Hoje é comum ficar assistindo televisão no quarto ou trocando mensagens no celular até sentir vontade de dormir. E, sim, muita gente apaga o aparelho e depois os olhos sem problemas. Mas, de forma geral, isso é contraindicado porque a luz dos eletrônicos atrapalha o ciclo natural do descanso do corpo. Se você convive com a insônia, o efeito prejudicial sobre a indução do sono se fará sentir.
Por isso, medidas que desaceleram o organismo são importantes à noite (não só na hora de se deitar). Baixe a luminosidade da casa, não leve trabalho para o quarto, abafe os ruídos e fique longe das telas.
“Se você for para a cama e passar meia hora lá mas não conseguir dormir, não adianta ficar revirando. O ideal é sair da cama e fazer algo como uma leitura agradável e só voltar quando sentir sono. Isso ajuda a construir uma relação mais agradável com o local onde dormimos”, aconselha Drager.
Elas valem para todo mundo, com ou sem insônia. O ideal é que à noite o corpo desacelere para que consiga repousar. Então evite atividades e bebidas estimulantes de duas a três horas antes de dormir, reduza a luz e o som da casa, não faça do seu quarto uma continuação do escritório e tente ficar longe de equipamentos eletrônicos pelo menos uns 30 minutos antes de se deitar. Outra dica: procure deixar o quarto agradável, limpo e escurinho, com colchão e travesseiro confortáveis. Finalmente, estabeleça rotina: crie e respeite horários para acordar e dormir.
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Nem sempre, porém, a higiene do sono é suficiente. E aí é preciso investigar outros transtornos que sabotam o repouso noturno. E tratá-los. Muita gente não consegue dormir direito por causa de ansiedade, depressão e apneia, por exemplo.
Exames que avaliam a qualidade do sono, como a polissonografia, auxiliam a entender o que está rolando. E o encaminhamento a um médico especialista faz diferença para bolar a contraofensiva à insônia. Até porque existem medicamentos para essa finalidade. Eles literalmente desligam nosso estado de vigília e fazem a gente capotar. Mas são uma faca de dois gumes quando mal prescritos e utilizados.
“Os benzodiazepínicos, remédios tarja preta muito comuns nessa área, induzem um sono não natural e não reparador, além de causarem dependência”, afirma o presidente da ABS. Drager explica que hoje existem remédios mais novos, de outras classes, capazes de melhorar a entrada em todas as fases do sono de forma mais natural.
Ainda assim, eles precisam ser bem indicados pelo especialista e seu efeito tem de ser reavaliado de tempos em tempos. “Existe um problema crescente de dependência de remédios para dormir. E não é saudável tratar a insônia só com eles”, conclui o médico.
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Até porque existem as intervenções não farmacológicas, como a psicoterapia. A terapia cognitivo-comportamental (TCC) é considerada o padrão ouro nesse departamento. “A insônia envolve aspectos comportamentais, cognitivos e emocionais. É influenciada por hábitos, pensamentos e sentimentos”, sintetiza a psicóloga Ksdy Maiara Sousa, doutoranda na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ela explica que, nas sessões, o paciente é instigado a entender sua rotina, as preocupações e outros fatores que incidem sobre o sono, e a aprender estratégias para lidar com tudo isso, como anotar os afazeres e não levar problema para a cama, além de meditação e técnicas de relaxamento.
A psicóloga conta que, se utilizados de forma correta e sinérgica, os medicamentos e as horas de terapia formam um combo de sucesso. “O remédio dá tempo para a pessoa melhorar os hábitos sem ficar com a ansiedade e a obrigação de ter que conseguir dormir logo que começa a terapia. Ele dá uma segurada enquanto o paciente entende e aprende as técnicas e ganha autonomia, podendo largar o medicamento depois”, justifica.
Um cardápio equilibrado e variado contribui para a regulação dos ciclos do organismo, o que tem consequências para o sono. Outra dica nessa seara é não exagerar na refeição à noite — isso realmente pesa na digestão e no descanso. Já a prática de exercícios comprovadamente melhora o repouso noturno. Ela faz o corpo gastar energia e liberar hormônios bem-vindos ao relaxamento depois. Mas é importante pontuar: o ideal é treinar no máximo três horas antes de ir para a cama. Senão a adrenalina não deixa a gente adormecer.
Independentemente do jeito de tratar, o ponto que todos os entrevistados sublinham é: não subestime a insônia!
O presidente da ABS afirma que muitos brasileiros não procuram ajuda por duas razões: a negligência com o sono, que os faz acreditar que se trata de um problema menor ou resolvido com soluções caseiras; e a dificuldade de acesso a especialistas, principalmente no SUS.
Precisamos dar mais valor ao sono. Isso já virou uma questão de saúde pública.
Insônia: entenda o sono que não vem Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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