quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Livro da Semana: “Cozinha Confidencial”, de Anthony Bourdain

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Anthony Bourdain viveu duas vidas. Foi uma estrela de TV na meia-idade. Mas, até fazer uns 40 anos, foi um personagem da Nova York decrépita de Taxi Driver. Um chef workaholic formado na CIA, a Harvard das escolas de culinária, que pedia emprego nas cozinhas de Manhattan sob efeito de cigarro, álcool, aspirinas e heroína.

Lidava com fornecedores mafiosos, imigrantes ilegais, gente com potencial para virar o Coringa e um monstro sagrado chamado Bigfoot. Trata-se de um homem com a eficácia (e a misericórdia) de Pablo Escobar, que administrava dezenas de restaurantes, sabia cada passo de cada funcionário e oferecia, de graça, salgadinhos particularmente salgados no balcão do bar – para que os clientes beslicassem, ficassem com sede e pedissem mais drinks. 

Em 2000, Bourdain lançou o livro Cozinha Confidencial, em que narra tudo isso com a honestidade de uma delação premiada: conta como os restos dos jantares de gala no mirante do Rockefeller Center eram reaproveitados nos almoços de empresários gordos. Conta do coliseu de massa que encheu com 20 litros de ensopado. Conta seu estágio na mesa de saladas de um restaurante litorâneo, cujo churrasqueiro tinha mãos descritas como uma “horrenda constelação de bolhas, de vergões raivosos e rubros deixados pela grelha, de antigas cicatrizes e feridas em carne viva (…)”

O ápice é sua estabilidade como chef no Les Halles. Uma brasserie séria, em que ele é o manda-chuva e opera a cozinha com a precisão de um acelerador de partículas.

Cada página é um esforço consciente de borrar a fronteira entre Keith Richards e a realidade: talvez roqueiros grisalhos com cheiro de cigarro que desmaiam em becos sujos realmente existam. Talvez Bourdain seja um deles. Talvez você continue achando ele o máximo apesar de tudo isso. Há até a possibilidade vaga de que tudo aquilo que ele narra tenha realmente acontecido (e aconteceu, mas é tão difícil admitir). 

Suas memórias fizeram um sucesso milionário. Bourdain se tornou um best seller do New York Times e ganhou uma sequência de programas de TV suntuosos, em que viajava o mundo sem nojinho, varrendo espeluncas do Vietnã à Colombia como um furacão de nicotina faminto.

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Em São Paulo, descreveu o pão francês na chapa como uma esponja prazerosa que absorve o álcool da noite anterior. E antes de encarar um espetinho na calçada, verificou se havia uma vira-lata caramelo por perto. Era seu controle de qualidade: se um cão quer, eu vou gostar.

Em certo episódio, relaxando após um almoço na Sardenha, ele narra em off: “o que você faz depois que todos os seus sonhos se realizam?” 

Bourdain escreve com medidas iguais de grandiloquência e deboche – em muitos trechos, não dá para saber se ele está tirando sarro de si mesmo ou se realmente relembra suas desventuras com a glória narrativa de um imperador romano.

Na verdade, ele alterna entre dois registros a cada frase às vezes, ambos dividem o mesmo ponto final: “Experimentei minha primeira ostra. E esse, sim, foi um acontecimento significativo. Lembro-me dele como me lembro do dia em que perdi a virgindade – e sob muitos aspectos com mais carinho. (…) Sabe-se lá bem como, eu me tornara um homem. Eu tivera uma aventura, havia provado do fruto proibido.”

A dualidade no texto era também dualidade na vida. Apesar do verniz de caos, Bourdain era um cara metódico, de agenda lotada, que jantou até com Obama (“Com que frequência o senhor dá uma escapada para uma cervejinha?” “Não consigo escapar, não tem como”, o presidente respondeu.)

Viajando 200 dias por ano, não tinha amigos além do séquito de câmeras que o perseguiam pelo mundo. Obama pode até não ter tempo para a cerveja, mas Bourdain só tinha tempo para cervejas – e talvez ansiasse por outras coisas, ainda que não soubesse lidar com elas caso um dia chegassem: uma semana sem pegar um avião? Comendo comfort food na casa da mãe? Bourdain não conseguia levar a vida normal a sério – mas certamente pensava muito sobre a própria vida.

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