Mais de um ano depois do aparecimento do coronavírus, poucos remédios demonstraram algum efeito em combatê-lo. Nesse meio tempo, promessas falharam, outras seguem em testes, e certos medicamentos parecem mesmo úteis nos quadros mais graves de Covid-19, quando o problema não é tanto o vírus, mas sim os estragos inflamatórios provocados por ele.
“A principal evolução nesse período foi justamente entender que talvez o tratamento deva focar não no ataque direto ao coronavírus, mas no ajuste da resposta imunológica da pessoa, já que é o desequilíbrio nesse ponto que costuma levar aos casos mais graves”, aponta o pneumologista Rodolfo Augusto Bacelar de Athayde, do Complexo Hospitalar Dr. Clementino Fraga, de João Pessoa/PB.
Recentemente, boas notícias seguindo essa linha de raciocínio foram divulgadas. Antes de nos aprofundarmos nelas, contudo, vale um alerta. Não existe ainda um remédio que contenha os casos leves ou que previna a infecção, ao contrário do que o Ministério da Saúde alega. “Nenhum medicamento se mostrou benéfico nesse sentido”, lamenta Athayde.
O chamado kit Covid-19, coquetel que inclui vários dos compostos que serão citados nesta matéria, ainda traz riscos. “Essa polifarmácia não impede o agravamento do quadro e pode ocasionar efeitos colaterais”, avisa a intensivista Viviane Cordeiro Veiga, coordenadora da UTI da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Cloroquina não funciona e pode fazer mal
A cloroquina, usada originalmente para tratar malária e doenças autoimunes, foi uma das primeiras promessas para acabar com a pandemia. Até pelo longo tempo de convivência, as evidências depondo contra ela são as mais robustas.
Existem estudos randomizados controlados (considerados os mais confiáveis) mostrando que ela não previne a infecção, não cura casos leves ou assintomáticos e não ajuda indivíduos hospitalizados.
Fora isso, a droga pode ser perigosa se tomada indiscriminadamente, especialmente para o coração. A FDA, agência que regula os fármacos nos Estados Unidos, revogou a autorização emergencial que tinha emitido para a cloroquina e a contraindica desde o ano passado, alertando para “sérias” arritmias, desordens sanguíneas, lesão renal e outros problemas.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Sociedade Brasileira de Infectologia também não recomendam o antimalárico nesse contexto. “Além do risco cardíaco, notamos nos pacientes internados que estavam tomando cloroquina alterações nas enzimas do fígado”, conta Viviane, que participa da Coalizão Covid-19 Brasil, iniciativa que testou a droga.
Antiparasitários: ivermectina e nitazoxanida
Não existem evidências suficientes a favor de nenhuma das duas. A ivermectina demonstrou impedir a replicação do coronavírus em células isoladas. “Mas só em dose muito maior do que a considerada segura para os humanos”, comenta Athayde.
Existem pesquisas clínicas sendo conduzidas sobre ela, que deverão trazer respostas definitivas sobre o assunto, mas até agora não há nada que embase sua prescrição.
Outro antiparasitário cogitado como ajuda na pandemia foi a nitazoxanida, famosa pelo nome comercial, Annita. Em estudo realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro com apoio do Ministério da Ciência, Inovação e Tecnologia (MCIT), a droga pareceu reduzir a carga viral. Mas, na prática, não ajudou na recuperação dos infectados. Além disso, o estudo foi criticado por sua metodologia.
“Essas medicações não funcionam contra a Covid-19 e têm efeitos adversos, como náusea, vômito e diarreia”, resume Viviane.
Dexametasona tem eficácia em casos graves
De acordo com um dos braços da Coalizão Covid-19 Brasil, a dexametasona, anti-inflamatório pertencente à classe dos corticoides, ajuda a combater casos graves da doença. Outras pesquisas sérias chegaram à mesma conclusão.
“É a única droga que realmente mudou o quadro dos pacientes até agora. Sobre todas as outras, ou não há evidências ou os resultados são controversos”, pontua Viviane, que participa da empreitada.
Mas atenção: o benefício é para quem está com sintomas severos, e precisa de oxigênio. Se dada precocemente, a dexametasona pode inclusive atrapalhar a resposta imunológica do indivíduo e prolongar o tempo da doença.
Anticorpos monoclonais
São as chamadas terapia-alvo. Tratam-se de moléculas programadas para atuar em um ou outro processo bem específico do corpo. Recentemente, duas foram notícias: o tocilizumabe e o sarilumabe, que bloqueiam a ação da interleucina 6, uma molécula pró-inflamatória produzida em excesso nos casos mais severos de Covid-19.
O Imperial College de Londres notou uma possível redução de mortalidade com elas, que foram originalmente criadas para tratar artrite reumatoide. Entreanto, os achados devem ser revisados por pesquisadores independentes. Mesmo assim, baseados em outros estudos, o sistema de saúde do Reino Unido autorizou os remédios para pessoas internadas na UTI e precisando de alto fluxo de oxigênio.
Dezenas de anticorpos monoclonais já foram testados para Covid-19 com resultados ora animadores, ora nem tanto. “É um ponto que ainda precisa ser bastante discutido e investigado”, diz Viviane. “Mas pode ser uma via promissora para o futuro”, complementa Athayde.
Plasma convalescente
A estratégia é simples: oferecer ao doente anticorpos que neutralizam o coronavírus já prontos, extraídos do sangue de alguém acometido. A terapia tem limitações, como a baixa capacidade de produção, já que é preciso usar sangue de indivíduos acometidos. Daí porque não é encarada como uma grande solução para o cenário atual.
Recentemente, um trabalho argentino deu fôlego à estratégia, mas em contexto bem específico – em idosos que receberam o plasma nas primeiras 72 horas de internação. Entre eles, o risco de insuficiência respiratória caiu pela metade.
“Mas, infelizmente, os trabalhos mais robustos não apontam benefícios da tática”, conclui Viviane, citando dois estudos com conclusões negativas. Um foi publicado no The British Medical Journal e o outro, no The New England Journal of Medicine – ambos estão entre os periódicos científicos mais respeitados do mundo.
Soros de animais
Seguindo uma lógica parecida com a do plasma, mas extraindo os anticorpos de animais, há ainda o soro extraído dos cavalos. Existem ao menos duas versões produzidas no Brasil, no Instituto Vital Brasil e no Butantan. Nenhuma foi testada em humanos. A Argentina também tem sua fórmula, inclusive já aprovada de maneira emergencial.
No estudo pré-aprovação conduzido no país vizinho, 242 pessoas foram divididos em dois grupos: um recebeu o soro, enquanto o outro ficou com o tratamento padrão. A mortalidade foi 45% menor na primeira turma, segundo os autores. O trabalho foi conduzido pela Universidade San Martin e, apesar de não ter sido divulgado ao público, motivou a liberação condicional do uso entre os portenhos.
Uma curiosidade: aventa-se até a possibilidade de utilizar anticorpos obtidos de uma espécie de camelo. Essa tática ainda está nos estágios iniciais de pesquisa.
Atenção ao uso de antibióticos para a Covid-19
Basta conversar com alguém que contraiu Covid para ver como virou praxe a prescrição de antibióticos como a azitromicina e a doxicilina para combater o vírus. “Esse uso é extremamente equivocado. A azitromicina só deve ser usada se houver uma suspeita de infecção bacteriana coexistente”, diz Athayde.
A principal preocupação dos médicos é que o exagero prejudique a ação já consagrada das drogas no futuro. “Elas podem deixar de fazer efeito contra pneumonias e outras doenças por causa da resistência bacteriana”, alerta o pneumologista.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) faz a mesma ponderação.
Para o futuro: células-tronco mesenquimais
Outro caminho sendo desbravado para tratar casos graves da doença é o uso de células-tronco extraídas do cordão umbilical. Elas se transformam em novas células e tecidos, e poderiam melhorar a resposta imunológica e a reparação de tecidos danificados pela Covid-19.
Em uma pesquisa pequena, realizada com 24 pessoas no estágio mais crítico da doença, a terapia aumentou a sobrevivência e diminuiu o tempo de recuperação. Os achados foram publicados no periódico Stem Cells Journals, mas precisarão ser confirmados com estudos maiores e rigorosos.
O que é necessário para comprovar a ação de um medicamento
Só se pode ter certeza que um remédio é bom contra alguma doença depois que ele passa pelo chamado ensaio duplo cego, randomizado e controlado. Trata-se de uma pesquisa que compara a ação daquela substância com outra (um placebo ou o tratamento convencional). Ninguém sabe quem está tomando o quê, e, quanto mais gente for incluída, mais confiável é o resultado.
A metodologia rígida é a única maneira de reduzir o perigo do viés de confirmação, que é quando a conclusão vem antes da investigação.
“Suponha que um pesquisador queira mostrar a qualquer custo que certo medicamento funciona. Ele realiza o experimento e, todas as vezes em que o resultado de um voluntário é contrário à sua conclusão, ele o descarta”, continua Marcelo Takeshi Yamashita, diretor do Instituto Questão de Ciência e do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
É o caso, por exemplo, de um artigo publicado no Journal of American Medicine que tem sido usado como prova de que o tratamento precoce funciona. Escrito a partir de uma revisão de literatura e publicado em janeiro, os autores deixaram de lado as provas existentes (os estudos controlados feitos em humanos) de que vários dos remédios citados lá não funcionam.
“O artigo não pode ser considerado evidência científica, mas sim um artigo de opinião, pois não é uma revisão feita com metodologia de qualidade, além de desconsiderar diversos outros estudos já discutidos pela comunidade científica”, pontua Athayde.
O próprio periódico é questionável. Apesar de ser revisado por pares, seu fator de impacto, medida de qualidade da publicação, é de 4.760. Para se ter ideia, os considerados mais confiáveis têm um fator de impacto acima de 40.000.
Os achados de ensaios in vitro, que utilizam células isoladas, não podem ser extrapolados para humanos. Nosso corpo, afinal, tem um funcionamento bem mais complexo do que uma única célula, e nesses testes a segurança não é uma preocupação. O caso da ivermectina ilustra bem isso – se fosse usada em pessoas na dose que funcionou nas células, seria tóxica.
Remédios contra Covid-19: o que funciona e o que é melhor deixar para lá Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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