O ano 2020 foi desafiador, para dizer o mínimo. Quando as escolas particulares da cidade de São Paulo fecharam os portões no dia 16 de março, seguidas pelas escolas públicas na semana seguinte, o senso comum era de que se tratava de uma medida temporária, para “organizar a casa” – ou seja, equipar hospitais e preparar a saúde para a pandemia do novo coronavírus.
Com o avanço dos números de casos e mortes no Brasil, ficou evidente que as instituições de ensino não seriam reabertas antes das férias escolares – apesar de alguns países na Europa terem começado a reabrir suas escolas respeitando os protocolos sanitários. Naquele momento, entendia-se que essas nações europeias tinham conseguido “achatar a curva”, enquanto a nossa estava em franca ascensão.
Pois bem: as férias chegaram, o Plano SP foi lançado e, considerando o sucesso na volta às aulas no hemisfério norte e na abertura de todas esferas econômicas do estado de acordo com o Plano SP, era inconcebível pensar que a maior capital da América Latina manteria as escolas fechadas até o final do ano.
Nossa crença de que a reabertura aconteceria tinha a ver também com a publicação de diversos estudos científicos que garantiam que as crianças não são grandes vetores de transmissão do vírus, como se pensava. Cabe lembrar ainda que a Europa manteve as escolas funcionando durante todo o segundo semestre de 2020, enquanto enfrentava uma segunda e ainda mais avassaladora onda de Covid-19.
Dentro da nossa ingenuidade, a educação deveria ser prioridade: a última coisa a fechar, e a primeira a abrir. Como o prefeito justificaria liberar bares, restaurantes e academias, sem fazer o mesmo com as escolas?
Quando nossa curva finalmente caiu e atingimos a fase verde do Plano SP, qual era o argumento para permitir que as crianças voltassem ao ambiente de ensino, mas apenas para atividades extracurriculares, e não para aulas propriamente ditas? Surpreendentemente, até cinemas, parques temáticos e bufês infantis poderiam funcionar.
Foi aí que nos deparamos com uma realidade nunca imaginada: um governo sem compromisso com a educação, usando a abertura de escolas como moeda de troca em ano eleitoral, e uma sociedade apática, inerte, acomodada com o “novo normal” de escolas fechadas.
Dentro de casa, esse período se mostrou extremamente complicado. Com filhos em idade escolar, precisamos conciliar os afazeres domésticos, o trabalho e a educação das crianças. Nossos filhos sentiram falta da escola desde o primeiro dia.
Os menores apresentaram dificuldades extras na adaptação ao ensino à distância: não topavam assistir vídeos, não queriam ser gravados e não se sentiam interessados no conteúdo apresentado. Afinal, na Educação Infantil, o aprendizado se dá através da troca, baseada na interação com amigos e professores.
Com os mais velhos, os problemas eram outros: tempo excessivo de tela, falta de exercício físico, ganho de peso e ansiedade. No final do ano, uma das nossas crianças já não tinha mais unhas de tanto roer, hábito desenvolvido durante o interminável período de ensino à distância.
Um dia, escutamos que “as crianças voltariam para a escola quando fosse seguro”. Mas, como explicar para elas que shoppings, restaurantes e atividades extracurriculares são seguros, enquanto a escola, não? E, quando finalmente puderam voltar ao ambiente escolar por pouquíssimas horas, não podiam estudar, apenas brincar. Se é difícil para um adulto entender o raciocínio por trás de decisões assim, imagine expô-lo a uma criança.
Foi diante deste cenário que resolvemos encarar o problema de frente. Criamos, assim, o Escolas Abertas. O movimento nasceu da nossa indignação. Indignação com um governo que não prioriza a educação, com a inversão de valores denunciada pela abertura de todas as esferas da economia, menos as escolas, e sobretudo com uma questão cultural, que ficou muito evidente na pandemia: assim como nossos governantes, nós, enquanto sociedade, também não valorizamos a educação.
Ora, passamos 2020 assistindo de camarote nossas crianças serem “educadas à distância”, sem nos preocuparmos com os efeitos avassaladores desse ano no futuro não só delas, mas também do nosso país.
Toda criança merece atenção
Logo no início, olhando o que estava acontecendo em outros estados do Brasil, onde a maioria das escolas reabertas eram particulares, tomamos a mais acertada decisão: nosso movimento também focaria nas escolas públicas. Isso porque o ensino à distância já tinha aprofundado a desigualdade que separa as duas redes de ensino. E lutar apenas por escolas particulares colocaria os alunos da rede pública em uma situação ainda mais crítica.
Resolvemos, então, entrar com uma ação popular contra a Prefeitura e o Estado de São Paulo. Nela, mais do que a abertura das escolas de acordo com o Plano SP, pedimos que as instituições da rede pública municipal e estadual da capital sejam adaptadas e preparadas para reabrirem com segurança.
Claro que nós não queremos uma abertura a qualquer custo. Ela precisa ser parte de um plano estruturado, que trate a educação e a segurança de alunos, professores e funcionários com a prioridade que merecem. E esse processo deve acontecer independente do início da tão desejada vacinação.
Vale ressaltar que a pandemia trouxe à tona as questões que a rede pública de ensino enfrenta há anos e que, em geral, são deixadas de lado pelos nossos governantes. Percebemos que, se a situação dos nossos filhos, que gozam de certos privilégios, era difícil, a de alunos da rede pública era catastrófica!
Uma grande parcela desses alunos jamais esteve em isolamento social. Longe da escola, ficaram expostos ao vírus, à falta alimentação e a todo tipo de violência. Muito se fala sobre a desigualdade no ensino à distância, já que várias crianças da rede pública sequer têm computador, TV e internet. Mas o que é a falta de acesso ao conteúdo escolar para crianças que foram colocadas em posição de completo abandono pelo governo e por nós, enquanto sociedade? A realidade delas é desoladora.
Sabemos que as mudanças que propomos não são fáceis. Mas reabrir as escolas é o primeiro passo de um caminho longo que teremos que percorrer se quisermos ser uma sociedade que de fato valoriza a educação – e que vê nela a chance de uma verdadeira transformação social. Gostamos de pensar que, dentro do caos que estamos vivendo, a luta pela educação é uma luz no fim do túnel. E não temos mais tempo a perder. Abrir as escolas é urgente. É essencial!
Isabel Quintella e Lana Romani são líderes do movimento #EscolasAbertas
Sociedade se une pelo direito à educação durante a pandemia de Covid-19 Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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