sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

A covid mudou a publicação de artigos científicos. Foi para melhor?

A pandemia tirou a ciência do papel de coadjuvante na vida pública: notícias sobre vírus, genomas, anticorpos e vacinas saíram de um cantinho empoeirado nos jornais e se tornaram alvo de uma cobertura diária exaustiva.

Profissionais acostumados ao xadrez da política ou a bolsa de valores agora precisam encarar um outro jargão que muitos não veem desde a época do vestibular. Não basta entender: é preciso explicar, de maneira didática, o que é um RNA, uma proteína ou uma célula T.

Seria ótimo se conhecimentos básicos de biologia, medicina e química fossem suficientes para navegar pela maré de artigos especializados sobre o coronavírus: só entre janeiro e julho de 2020, foram 23,6 mil.

Mas não são: toda a atividade científica contemporânea se alicerça em uma intricada indústria de publicação de resultados, que é bem diferente do mercado editorial comum. Entendê-la é quase tão complicado quanto entender a ciência em si.

Os resultados de qualquer pesquisa precisam ser publicados em um periódico especializado da área. As editoras desses periódicos submetem as pesquisas a um processo chamado revisão por pares, em que os cientistas leem os trabalhos uns dos outros em busca de imperfeições na metodologia e nas conclusões.

Esse processo é mediado pelos editores, que escolhem os artigos passíveis de publicação, encontram as pessoas certas para cada revisão e coordenam o processo.

Com a busca de fármacos e vacinas para conter a pandemia, a velocidade das revisões precisou aumentar um bocado – e com ela, o potencial para erros.

Além disso, houve uma explosão no número de pré-publicações – em inglês, preprints: artigos que ainda não passaram por revisão, mas cujos autores optam por deixar no ar provisoriamente para que a comunidade científica como um todo (e não só os revisores) possa dar uma espiada e sugerir melhorias.

É comum que jornalistas trabalhando com prazos apertados encontrem esses artigos e publiquem as informações preliminares sem precaução. Se depois ficar estabelecido pelos revisores que o estudo não era confiável, pode ser tarde demais: a notícia já circulou nas redes e se torna dificílimo desmenti-la.

Por fim, os interesses da indústria farmacêutica e de certas forças políticas tornaram as conclusões um campo minado. Os revisores precisam ter cuidado redobrado ao analisar testes clínicos: como foi a divisão dos grupos que tomariam placebo ou o medicamento real? A quantidade de pacientes analisados têm relevância estatística? Em suma: alguém forçou a barra porque precisava aprovar uma droga que, na verdade, é ineficaz? 

Super conversou com Rebecca Cooney, uma das editoras executivas do periódico The Lancet. Publicado desde 1823, é um dos mais tradicionais e cobiçados da área da saúde. As pesquisas que passam pelo crivo deles recebem, em geral, grande atenção da mídia e dos pesquisadores da área.

Lancet ficou no centro das atenções do público leigo em junho de 2020 por causa da retração de um estudo sobre a falta de eficácia da cloroquina contra a covid-19. A retração é um procedimento previsto por todo periódico renomado, e geralmente é requisitada pelos próprio autores do artigo que contém o erro. Mas esse caso tomou proporções maiores: passou a simbolizar as dificuldades de se fazer e cobrir ciência no mundo pandêmico.

Super: A pandemia acelerou a revisão por pares?

Rebecca Cooney: Existe uma área chamada fast track review (“revisão rápida”). A gente pede para os revisores devolverem as leituras em 48 horas. Essa é uma exigência muito pesada. São pessoas que fazem suas próprias pesquisas, ou que estão nos hospitais. É todo mundo trabalhando junto. 

No periódico, nós fizemos um esforço para acomodar tudo isso no nosso fluxo de trabalho. A gente parou de fazer algumas coisas temporariamente, como escrever editoriais, para acomodar um volume maior de revisões por pares. Essa velocidade não é sustentável. A gente fez muita coisa incrível em 2020, mas não é realista continuar assim. Precisamos de uma pausa.

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Em alguns momentos, a gente tem 20 ou 30 artigos na mão de cada editor. Exige muita coordenação tentar encontrar pesquisadores com que a gente ainda não trabalhou, mas que podem ter experiência, para revisar esses trabalhos. 

S: Como você avalia o desempenho dos jornalistas que cobrem covid-19?

RC: Os jornalistas estão em uma situação difícil na pandemia. Eles precisam navegar por resultados científicos complicados, e também precisam explicar como funciona o sistema de publicação. Entender o que é revisão por pares, entender que os resultados podem mudar, que uma descoberta pode não se segurar. Na maior parte do tempo, eu fico impressionada com a maneira como vocês conseguem fazer isso.

S: Como a mídia deve lidar com as pré-publicações? 

RC: Nos preprints divulgados pela Lancet, a gente garante que os resultados sejam pelo menos verificados do ponto de vista ético principalmente se a pesquisa em questão envolve voluntários humanos. 

Nossa equipe de comunicação também é bem treinada em explicar resultados. É uma maneira de manter os pesquisadores em contato com os jornalistas. Às vezes, um jornalista descobre um preprint sem essa intermediação, e isso é arriscado. 

Apesar disso, a ciência corrige a si própria. Quando alguém pública informações falsas, há um feedback da comunidade cientifica, e tudo se corrige. Por isso, eu tenho confiança de que, caso saia algo inexato em um preprint, os jornalistas vão expor aquela informação e todos ficarão sabendo. 

S: Como foi lidar especificamente com o caso da cloroquina?

RC: É surpreendente o quão rápido ocorreu a correção. Foi uma questão de dias até o artigo ser retratado. Os próprios autores se esforçam para tirá-lo do ar. Isso faz parte dessa ideia maior da ciência se autocorrigindo. Foi uma grande oportunidade para a população leiga que acompanha as notícias aprender como a ciência funciona.

S: Considerando o quão importante é atualizar a comunidade científica sobre as novidades principalmente durante uma pandemia , há uma tendência de que não haja mais paywall nos periódicos científicos? 

RC: É uma decisão difícil. Editoras tradicionais e com legado, como a Elsevier, que publica o Lancet, têm periódicos prestigiosos e editores profissionais empregados em tempo integral. Isso custa dinheiro. Sai caro mandar eles para conferências, garantir que estão prestando atenção nas pesquisas recentes e que a revisão por pares atingirá um certo padrão.

Outro problema é que os artigos não são todos iguais. Alguns trabalhos exigem um esforço editorial enorme, outros não. Se o artigo que você está revisando não envolve voluntários humanos, não propõe novas drogas etc., então ele não precisa passar por tantos procedimentos de segurança. Mas não é isso que acontece com um teste clínico de uma vacina. Nesse caso, a gente precisa garantir que está tudo certo. Você cobraria o mesmo pelo acesso aos dois? É difícil, porque eles não são análogos.

(Nota da Super: em artigos de acesso aberto, sem paywall, a praxe é cobrar dos pesquisadores que realizaram a pesquisa e desejam que ela permaneça liberada. As taxas, em geral, são inacessíveis para pessoas físicas; o custo é coberto por uma fatia da verba destinada à pesquisa. Universidades de países em desenvolvimento, com orçamento menor, têm dificuldades em pagar pelo acesso aberto, e seus artigos acabam ficando atrás do paywall.)

Alguns financiadores, como a Gates Foundation (de Bill Gates), têm uma regra interna que diz que todo trabalho financiado por eles precisa ser publicado com acesso aberto. Só de ver, a gente já sabe. Eu tenho a sensação de que o melhor sistema de publicação precisa ser diverso, oferecer diferentes opções para os autores.

Outra opção são os já mencionados preprints. Para as pessoas que querem o trabalho divulgado imediatamente; feedback instantâneo e grátis. Não acho que isso substitui o mercado editorial, mas é um complemento, anda ao lado. Eles podem coexistir. Eu simpatizo com os dois lados, especialmente porque vim da ciência e agora trabalho para uma editora.

 

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