Nossas retinas têm células receptoras chamadas cones, e cada um deles se especializa em uma cor: vermelho, verde e azul. Essas cores correspondem a ondas eletromagnéticas de comprimento longo, médio e curto dentro do espectro visível. A maioria das pessoas possui os três tipos de cones. Por causa disso, elas são chamadas de tricromatas. Mas há quem tenha apenas dois tipos de receptores, o que gera dificuldade em distinguir cores. Essas pessoas são denominadas dicromatas, mas o mais comum é se referir a elas como daltônicas.
O daltonismo não é uma exclusividade dos seres humanos. Outros animais tricomatas, como os primatas não humanos, também podem manifestar um cone a menos. No Velho Mundo – termo que se refere à Europa, Ásia e África –, todos os macacos, independentemente de espécie ou do sexo, são tricromatas. Por outro lado, no Novo Mundo (termo que se refere às Américas), existem espécies em que as fêmeas possuem visão normal, mas quase todos os machos são daltônicos.
Para um ser humano, a visão tricromata evidentemente é uma vantagem adaptativa – é só pensar nas cores do semáforo, que os motoristas daltônicos só conseguem identificar porque são empilhadas em uma ordem fixa. Na pré-história, diferenciar cores poderia ser uma questão de vida ou morte.
Mas e no caso dos macacos? O que teria levado os primatas americanos machos a serem predominantemente dicromatas? Será que eles obtém alguma vantagem adaptativa com o daltonismo, em vez de desvantagem – e é por isso que essa característica se espalhou entre eles? Ou será que o daltonismo não afeta tanto as chances de sobrevivência porque existem alguma diferença na maneira como ocorre a predação nas Américas?
Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) decidiu investigar esse mistério. O primeiro passo foi partir da hipótese de que a baixa incidência do daltonismo em nós está relacionada à susceptibilidade dos indivíduos à predação. Macacos e humanos com a percepção das cores prejudicada teriam dificuldade em identificar predadores na natureza, o que os tornaria um jantar mais vulnerável para grandes mamíferos carnívoros.
Para comprovar essa hipótese, os pesquisadores resolveram testaram o tempo que seres humanos levam para identificar predadores na natureza – e a precisão deles na tarefa. Calma, nenhum voluntário virou comida durante o teste. Os pesquisadores tiraram fotos de animais fake na Mata Atlântica e no Cerrado e depois apresentaram as imagens a pessoas daltônicas e não daltônicas. O estudo foi publicado no periódico American Journal of Primatology.
Cada voluntário foi apresentado a quatro fotografias, que apareciam simultaneamente na tela do computador. Uma das imagens continha um animal camuflado; as outras três contavam apenas com vegetação. Como esperado pelos cientistas, os humanos tricromatas conseguiam ver o predador mais rápido e acertavam a foto com mais frequência.
Daniel Pessoa, co-autor do estudo, explicou a importância destes fatores: “se um macaco está no meio do mato comendo e enxerga o predador, ele pode dar o grito de alarme para deixar todo o resto atento e já se proteger. Alguns segundos já são vantajosos neste tipo de situação”.
Permanece, então, aquela dúvida: se a predação é mesmo uma razão importante para a manutenção do tricromatismo, por que há tantos animais dicromatas no Novo Mundo?
Podemos começar com uma sugestão. Nos primórdios da humanidade, o daltonismo evidentemente era uma característica que gerava dificuldades. Mas, conforme os humanos passaram a viver em grupos organizados, a ameaça dos predadores diminuiu e houve um afrouxamento da seleção natural contra essa característica. Não fazia mais tanta diferença assim ter ou não todos os receptores. Algo parecido pode ter ocorrido com os macacos.
No Velho Mundo, os primatas precisavam dividir espaço com felinos, crocodilos e outros predadores de grande porte. Para lidar com isso, os animais não apenas foram ficando maiores como houve uma forte pressão seletiva para que predominassem tricromatas na população – os daltônicos morriam com mais frequência. A visão das cores ajudava não só a fugir dos predadores, como também a identificar frutas e folhas adequadas para a alimentação.
Já no Novo Mundo, há macacos que não precisam fugir tão ativamente da predação. Além disso, alguns encontraram vantagens no dicromatismo. Apesar da condição dificultar a identificação de predadores como gato-do-mato, furão e puma – que foram usados nos testes com fotos mencionados anteriormente –, ela facilita na hora de enxergar insetos na natureza.
Macacos menores, de até cinco quilos, se alimentam desses bichinhos, o que torna o problema uma vantagem para algumas espécies. Até existem macacos maiores que apresentam o daltonismo, mas eles vivem na copa das árvores e geralmente são grandes demais para serem predados até mesmo pelas maiores aves de rapina. O tricromatismo, embora sempre útil, não apresentaria grandes vantagens na seleção natural, já que eles não correm tanto risco assim.
Você deve estar se perguntando: “Por que os macacos enxergam bem os insetos e não os predadores?”
A resposta está na camuflagem. Os animais considerados na pesquisa pelos cientistas eram todos carnívoros, e sua pelagem evoluiu para enganar os mamíferos de pequeno porte que eles caçam. E embora o tricromatismo seja comum em primatas, o dicromatismo é bem mais comum nos mamíferos em geral. Isso torna uma onça, por exemplo, bem menos chamativa para uma cotia do que é para um ser humano tricromata.
Os insetos, por sua vez, são presas fáceis de aves – que possuem uma visão excepcional para cores. Então, a camuflagem deles foca mais em padrões que enganem os tricromatas – mas que podem ser, paradoxalmente, mais suscetíveis aos dicromatas. A desvantagem se converte em vantagem.
Nos próximos passos da pesquisa, os cientistas querem analisar dados de serpentes, que geralmente são predadas por aves de rapina. As cobras são como os insetos: não evoluíram para enganar mamíferos. Isso significa que os daltônicos talvez tenham vantagem na hora de identificá-las. “Se você enxerga cores muito bem, você não enxerga padrões e bordas com facilidade. Agora, se você não enxerga cores muito bem, você consegue utilizar seu processamento para enxergar as bordas melhor”, diz Daniel Pessoa.
Na América, macacos daltônicos saíram na vantagem na seleção natural Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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