Imagine viver sem jamais comer um belo pedaço de pizza ou uma fatia de picanha suculenta nem conhecer o sabor de uma feijoada ou de uma lasanha. Essa é a realidade de quem tem fenilcetonúria, também conhecida como PKU (do inglês, phenylketonuria), condição congênita causada por uma mutação genética de herança autossômica recessiva. Ou seja, para nascer com a doença, é preciso que o bebê herde o gene alterado tanto do pai quanto da mãe. E, frequentemente, os pais não sabem que carregam o gene.
Apesar de ser considerada uma doença rara, a fenilcetonúria é a mais comum entre as doenças metabólicas. Segundo o Ministério da Saúde (MS), 94 novos casos foram diagnosticados em 2016, o que corresponde à incidência de um a cada 30 402 recém-nascidos vivos, considerando que houve 2 857 800 de nascimentos no Brasil naquele ano.1,2
A doença ainda não tem cura, e os impactos e desafios diários na rotina dos pacientes são enormes. A partir do diagnóstico, é preciso seguir uma dieta restritiva pelo resto da vida e, ainda assim, há o risco de complicações caso não se submetam ao tratamento adequado.
Para entender melhor
Quando consumimos alimentos que contêm proteínas, as enzimas digestivas quebram essas substâncias em aminoácidos necessários para a formação de novas proteínas para o organismo. A PKU, no entanto, provoca a ausência ou falha da enzima responsável especificamente pelo processamento do aminoácido fenilalanina. Com isso, ocorre o acúmulo dessa substância, que é tóxica ao sistema nervoso e pode causar lesões permanentes, como deficiência intelectual.
Os sintomas da doença
Inicialmente, os recém-nascidos com fenilcetonúria são assintomáticos. Porém, após os primeiros meses de vida, os bebês desenvolvem sinais e, se os níveis de fenilalanina forem elevados, o risco de causar danos neurológicos é grande. “Essa é uma doença metabólica, mas suas manifestações clínicas são neurológicas. A ausência de tratamento implica o comprometimento intelectual dinâmico, com oscilações e alterações de comportamento, como irritabilidade e agressão, evolução para o espectro autista, epilepsia, entre outros”, explica André Luiz Santos Pessoa, neurologista do Hospital Infantil Albert Sabin, em Fortaleza (CE).
Viver com fenilcetonúria
Quem tem a doença não pode comer alimentos que contenham o aminoácido fenilalanina, presente em todo tipo de proteína, animal ou vegetal. A dieta, rigorosa, exige o controle na ingestão de carnes, ovos, leite e derivados, alguns grãos e até vegetais. É preciso, ainda, tomar diariamente uma fórmula metabólica que tem a função de suplementação e é composta por aminoácidos, vitaminas e minerais. Essa fórmula metabólica não atua na causa da doença, mas como complementação de nutrientes essenciais que estão em falta na alimentação altamente restritiva em proteínas. Infelizmente, na maioria das vezes estas fórmulas possuem sabores e odores muito fortes, muitas vezes relatados pelos pacientes e seus familiares como cheiro de “ovo podre” ou “peixe podre”, o que dificulta sua ingestão. Vale lembrar que essa suplementação deve ser feita de 3 a 4 vezes por dia e diariamente.
Uma batalha diária
Há 13 anos, quando nasceu sua segunda filha, Leandra Vilela teve contato com a doença pela primeira vez. “Com 21 dias de vida, minha filha foi diagnosticada com fenilcetonúria. O primeiro cuidado foi substituir a amamentação por uma fórmula metabólica, já que o leite materno tem proteína”, conta.
Ela lembra que, enquanto bebê, sua filha foi absolutamente normal. “Mas, durante o desenvolvimento, qualquer dor de garganta, tão comum na infância, implicava alterações, como tremores e convulsões.”
Para Leandra, os desafios dos doentes e familiares são enormes. “Minha filha sempre foi muito colaborativa, até porque ela não conhece o sabor dos alimentos proibidos, nunca chegou a experimentá-los. Mas, agora que está chegando à adolescência, ela se sente diferente das outras pessoas, começa a questionar e transgredir. Cheguei a encontrá-la comendo pão de queijo escondida no banheiro”, lembra.
O teste do pezinho
A fenilcetonúria pode ser detectada por meio de um simples exame de sangue. No Brasil, o Programa Nacional de Triagem Neonatal, também conhecido como teste do pezinho, determina a obrigatoriedade da realização em todos os recém-nascidos, inclusive com avaliação para PKU.
Esse rastreamento neonatal é a maneira mais simples e eficiente de diagnosticar a doença. Basta fazer a coleta de sangue do bebê entre as primeiras 48 horas e cinco dias de vida completos, depois do consumo de dieta proteica, ou seja, aleitamento materno ou fórmula láctea.
As dificuldades do tratamento
A falta de inovação nos tratamentos – no Brasil, a doença é tratada da mesma maneira há mais de 30 anos –, a dificuldade de acesso a alimentos hipoproteicos, a restrição alimentar e a indisponibilidade da medicação são os principais entraves no controle da doença hoje. “A fórmula proteica é fornecida pelo SUS, mas, devido aos processos licitatórios, é substituída com frequência. Quando o paciente se adapta ao sabor, o produto é trocado”, conta Erlane Marques Ribeiro, pediatra e geneticista do Hospital Infantil Albert Sabin.
Em relação à dieta restritiva, a médica destaca a importância de toda a família apoiar o paciente na alimentação. “Quem tem fenilcetonúria come basicamente verduras e legumes e é importante que o restante da família coloque ao menos algumas folhas no prato. A conscientização de todos ajuda na manutenção da dieta a longo prazo.”
A geneticista ainda alerta para a necessidade de uma mudança cultural. “É preciso a educação de toda a sociedade para disponibilizar em restaurantes opções de alimentos voltados aos pacientes de fenilcetonúria, como hoje já existe para os celíacos”, destaca.
Segundo o neurologista André Pessoa, sobre a medicação hoje disponível, o Brasil ainda tem um grande caminho pela frente. Enquanto no mundo já existem algumas opções terapêuticas disponíveis, o protocolo de tratamento para PKU no SUS, hoje, somente oferece acesso ao tratamento medicamentoso aos pacientes do sexo feminino que planejam a gestação. Sendo assim, atende apenas uma pequena parcela da população.
Consciência e informação
Para conscientizar as pessoas sobre as dificuldades enfrentadas por quem vive diariamente com a fenilcetonúria e alertar sobre a necessidade de melhorar a qualidade de vida desses pacientes e familiares, nasceu a campanha #LEMBREDEMIMPKU.
A ação visa, ainda, influenciar as políticas públicas existentes para que colaborem com a oferta de tratamentos melhores para esses pacientes, a critério do médico, sempre respeitando a necessidade de cada um. Conheça, apoie, divulgue:
- Van Wegberg AMJ, MacDonal A, Ahring K, Bélanger-Quintana A, Blau N, Bosch AM, et al. The complete european guidelines to phenylketonuria: diagnosis and treatment. Orphanet J Rare Dis. 2017Oct 12;12(1):162.
- Blau, N., F.J. van Spronsen, and H.L. Levy, Phenylketonuria. Lancet, 2010. 376(9750): p. 1417- 1427.)
- Martins, A. M., Pessoa, A., Quesada, A. A., & Ribeiro, E. M. (2020). Unmet needs in PKU and the disease impact on the day-to-day lives in Brazil: Results from a survey with 228 patients and their caregivers. Molecular genetics and metabolism reports, 24, 100624. https://doi.org/10.1016/j.ymgmr.2020.100624
- CONITEC – Relatório de Recomendação-Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas Fenilcetonúria de março de 2019.
Você sabe o que é a fenilcetonúria? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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