Homens e mulheres respondem de forma diferente ao coronavírus. Eles têm mais chances de sofrer complicações graves, enquanto o sistema imunológico delas reage melhor à infecção. Além de serem as principais vítimas fatais da doença, os homens têm até três vezes mais chances de acabar na UTI.
Os pesquisadores ainda estão estudando as razões para isso, mas já temos algumas pistas. Uma das explicações para o fenômeno pode ser a reação exacerbada do sistema imunológico ao vírus, que acaba lesionando os órgãos do paciente.
As mulheres conseguem dar uma segurada nesse contra-ataque porque convocam menos neutrófilos para a batalha – um tipo de célula de defesa que, em excesso, danifica tecidos inocentes.
A geneticista Paula Freire, da Universidade de São Paulo (USP), percebeu essa diferença quando analisava bases de dados de pacientes que contraíram covid-19. Seu objetivo inicial não era comparar a reação de homens e mulheres à doença, mas esse foi o recorte que mais lhe chamou a atenção.
Em suas análises, Paula olha para o transcriptoma nas amostras dos pacientes. Transcriptoma? Calma que vamos explicar.
O DNA geralmente é descrito como o “manual de instruções” do organismo. Ele dá a receita para montar todas as proteínas que formam você – das enzimas que digerem a comida à queratina dos cabelos e unhas. Acontece que o DNA, sozinho, não faz muita coisa: fica guardado no núcleo da célula, distante do chão de fábrica.
É por isso que existe um garoto de recados chamado RNA mensageiro (RNAm). É a molécula que entra no núcleo da célula, coleta as instruções e leva elas para estruturas chamadas ribossomos, onde as proteínas serão de fato fabricadas. É como se a célula fosse uma multinacional, com sede no núcleo e indústrias no citoplasma. A coleta de instruções se chama transcrição.
Esse processo ocorre dentro de todas as células: pulmão, fígado, coração… Cada uma delas tem uma cópia completa do genoma no núcleo. Mas elas só precisam expressar alguns dos genes: os que geram as proteínas necessárias para as funções que elas desempenham. Nem todo gene é usado por toda célula.
Se tirássemos uma “foto” do que acontece dentro da célula, a cada momento veríamos quantidades diferentes desses RNAs mensageiros. Isso porque o processo de transcrição é influenciado por dezenas de milhares de outras moléculas.
“Na biologia, a gente costuma dizer que não conhece nem 5% do que acontece dentro da célula”, diz Paula. Por isso, mesmo que um gene codifique a mesma proteína em duas pessoas, a expressão dele pode ser diferente em cada uma delas.
Na prática, essas “fotos” são o sequenciamento do transcriptoma – o perfil de todos os RNAs mensageiros em uma amostra. Pesquisadores ao redor do mundo têm analisado as transcrições que circulam nas células do epitélio nasal de pessoas com covid-19. Os resultados são publicados em bases de dados online, junto com a idade, sexo e outras informações do paciente.
Foi com essas informações que Paula comparou o perfil imunológico de homens e mulheres. O “manual de instruções” (os genes) pode até ser igual nos dois sexos, mas isso não significa que ele é lido da mesma forma.
É como se os homens lessem esse manual desesperados, gerando uma reação bioquímica em cadeia que chama todos os neutrófilos possíveis. Já as mulheres conseguem dosar melhor a leitura, modulando a quantidade de células de defesa.
A análise da covid-19 é apenas o estudo mais recente feito pela geneticista. Ela também se interessa em olhar para o transcriptoma de pessoas com caquexia – que é a perda de peso, gordura e músculos, principalmente em pacientes com câncer.
A caquexia também é resultado dessa resposta imune exacerbada ao invasor (o tumor). Nesse caso, as mulheres também levam vantagem por conseguirem modular melhor o sistema imune.
Uma das hipóteses para explicar o refinamento imunológico feminino é a gravidez. A mulher consegue carregar um corpo estranho dentro de si por nove meses sem que o seu organismo ataque o feto, como acontece no caso de um vírus. Por isso, seu sistema imune pode ter evoluído para ser mais controlado do que o do homem.
Paula acabou seguindo para a área da análise de dados porque não conseguiu verba para seu projeto de doutorado, que envolvia pesquisa em laboratório. É mais barato analisar dados já disponíveis do que coletá-los do zero. A vantagem foi que a pesquisadora aprendeu a utilizar ferramentas de biologia computacional – o que foi essencial para o estudo da covid-19, por exemplo.
No entanto, ela pretende voltar para a bancada do laboratório, levando essa bagagem de análise de dados. O próximo passo será coletar amostras de pacientes brasileiros para validar o que foi observado nos bancos de dados internacionais.
Paula Freire analisa RNA para entender por que homens reagem pior à covid-19 Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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