O nome técnico soa a algo raro e distante, mas o problema, infelizmente, não é nem um pouco incomum. Descrito pela primeira vez na medicina nos anos 1940 nos Estados Unidos, o lipedema afeta hoje uma em cada dez mulheres, o que soma cerca de 5 milhões de brasileiras.
Sua face mais evidente é o acúmulo de gordura em regiões como pernas e braços — situação que também arranha a autoimagem. “Mesmo entre os profissionais de saúde, pouca gente conhece o lipedema e sabe lidar com ele”, afirma o cirurgião plástico Fabio Kamamoto, fundador e diretor do Instituto Lipedema Brasil. A entidade foi criada justamente para compartilhar informações sobre o assunto e ajudar as mulheres a procurar o tratamento adequado — e junho foi eleito o mês mundial de conscientização a respeito.
Uma das confusões que esse movimento busca dissipar é achar que lipedema e obesidade são a mesma coisa. Não são! No primeiro, a gordura passa a crescer em áreas como pernas e até mesmo braços, e não na barriga, por exemplo. O quadro costuma ser bilateral e ocorrer inclusive em pessoas consideradas magras.
Além da repercussão no visual, provoca outros sintomas desconfortáveis. “As queixas mais frequentes são dores, inchaço, presença de vasinhos e hematomas espontâneos na região com a gordura”, conta o angiologista e cirurgião vascular Vitor Cervantes Gornati, membro da Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular (SBACV). Em fases avançadas, pode causar sensação de peso no local, que piora com o passar do dia, limitação de mobilidade e danos ao sistema linfático.
Por levar a mudanças na silhueta, o quadro é frequentemente rotulado de questão estética. Também não é! Trata-se de uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Sua inclusão na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID) passou a vigorar em janeiro de 2022.
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Mas por que a gordura insiste em aparecer fora de lugar? A causa do lipedema ainda não está totalmente esclarecida, mas já se sabe de uma influência genética: dois terços das pacientes têm histórico familiar.
O gatilho para o desenvolvimento está nos hormônios femininos estrogênio e progesterona, que estimulam certos grupos de células de gordura a inflar de um modo anormal. Daí a condição ser praticamente exclusiva das mulheres. “Os sinais começam quando elas passam por mudanças hormonais devido a uso de anticoncepcional, gestação, tratamento de infertilidade ou menopausa”, pontua Kamamoto.
A evolução do lipedema
Se não for contido, o problema pode avançar e gerar dores e deformidades
Grau 1
Os nódulos de gordura sob a pele já começam a ser palpáveis, mas a derme continua lisa. O inchaço piora durante o dia, e a doença responde bem ao tratamento inicial.
Grau 2
A gordura fica mais saliente, deixando a pele com textura irregular e lembrando celulite. O inchaço fica mais intenso, mas o quadro segue respondendo bem ao tratamento.
Grau 3
O tecido adiposo fica mais proeminente e apresenta fibrose. Nessa fase, o inchaço se torna consistente e o problema já não reage tanto ao tratamento clínico. Cirurgia pode ser opção.
Grau 4
Os sintomas do grau anterior se intensificam e há grande acúmulo de linfa no tecido, além de maior deformidade dos membros. A cirurgia acaba sendo a melhor saída.
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A demora na procura por ajuda especializada tem a ver com a ideia de que os quilos e a gordura a mais são resultado puro e simples da má alimentação e da falta de atividade física. Não é por aí!
No lipedema, a massa gordurosa não se distribui pelo corpo, como na obesidade, mas fica mais concentrada nas regiões afetadas. E a doença não responde tão bem só a dieta e academia.
“A gordura subcutânea, que é a que predomina nesses casos, tem atividade metabólica menor do que a visceral, aquela localizada entre os órgãos na região abdominal. Por isso, é mais difícil perdê-la”, explica a endocrinologista Maria Edna de Melo, diretora da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).
Assim, mesmo mulheres magras e sem barriga, ou que perderam muito peso, continuam com os depósitos gordurosos e a alteração visual decorrentes do problema. O duro é que o lipedema é progressivo e, se não for tratado corretamente, leva a mais acúmulo de gordura e até a incapacidade de locomoção.
“De 5 a 20% das pacientes atendidas em nossa clínica já fizeram cirurgia bariátrica e apresentaram reduções de peso de até 40 quilos, mas mantinham a gordura nas pernas, somada ao quadro de dor e inflamação”, relata Kamamoto, que atua em São Paulo.
Então, quem notar o crescimento de gordura restrita aos membros inferiores (e/ou superiores), sobretudo após um episódio ligado a mudanças hormonais, e observar casos parecidos na família deve ligar o alerta e procurar um médico.
O exame físico também é importante para checar se há nódulos, hipersensibilidade, perda de elasticidade, entre outros indícios de que a situação não se resume ao acúmulo de gordura. Como não existem exames específicos nem um protocolo-padrão para o diagnóstico do lipedema, o especialista tem de juntar as peças e afastar outras suspeitas.
A ausência de um roteiro definido para investigar o quadro e a falta de informação inclusive entre profissionais de saúde atrapalham a batida de martelo sobre a doença. “O diagnóstico raramente é feito no primeiro contato da paciente com um médico e, muitas vezes, há um atraso de vários anos até que o tratamento específico seja iniciado”, aponta o cirurgião plástico e perito médico judicial Mario Jorge Warde Filho, da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP).
O tempo perdido é um problema. Quanto mais cedo a condição começa a ser enfrentada, maior a chance de responder às medidas e aos procedimentos prescritos. “Além disso, as pacientes com boa adesão às terapias e que mantêm seu peso normal, com mínimas flutuações no decorrer da vida, apresentam uma evolução mais branda”, observa a endocrinologista Cynthia Melissa Valerio, membro do Departamento de Dislipidemia e Aterosclerose da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
Tratamento do lipedema, um trabalho em várias frentes
Depois que se chegou à conclusão de que se trata de um caso de lipedema, a recomendação número 1 é contar com o acompanhamento de uma equipe multiprofissional com conhecimento de causa, com endócrino, cirurgião, ginecologista, nutricionista, entre outras especialidades.
Mudanças de estilo de vida também são inescapáveis. É importante evitar o ganho de peso e se movimentar — são particularmente indicadas atividades físicas de baixo impacto sob supervisão de um educador físico.
Modalidades feitas na água, como natação e hidroginástica, são boas opções porque dão uma força à circulação sem impor desgastes aos membros inferiores e superiores.
O trabalho de um fisioterapeuta também é bem-vindo para auxiliar na melhora do retorno venoso, isto é, da volta do sangue para o coração, e do sistema linfático — aquele que recolhe impurezas pelo corpo e abriga as células de defesa.
“Para isso, utilizamos técnicas como a drenagem linfática e o enfaixamento compressivo, que inclusive pode ser utilizado enquanto a paciente realiza seus afazeres diários”, descreve a fisioterapeuta Laise Veloso, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O uso de meias de compressão e botas pneumáticas também pode compor o plano de ação. “E ainda temos a opção da terapia por ondas de choque, que quebra a fibrose formada no tecido e melhora a circulação”, acrescenta a especialista.
Fatores de risco para o lipedema
O que aumenta a propensão a essa doença
Gênero
O lipedema praticamente só atinge as mulheres, pois é desencadeado pela ação dos hormônios femininos.
Genética
Estatísticas apontam que dois terços das pacientes têm histórico familiar da doença — mães, irmãs ou tias com a mesma condição.
Hormônios
Variações de estrogênio e progesterona (puberdade, gestação, menopausa…) favorecem o acúmulo gorduroso.
Má oxigenação
Sedentarismo, tabagismo e outros fatores que atrapalham a circulação e a oxigenação dos tecidos podem predispor à doença.
A alimentação também demanda um cuidado especial no tratamento do lipedema. Não basta contabilizar a quantidade de calorias ingeridas para ver o ponteiro da balança descer, tampouco partir para regimes radicais.
Os ajustes à mesa contemplam uma série de detalhes — e o suporte de um profissional especializado se mostra decisivo. Segundo a nutricionista Adriana Kachani, colaboradora do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é preciso atuar em quatro frentes.
“Como se trata de uma doença inflamatória, precisamos montar um cardápio que desinflame o organismo, mas também melhore a retenção hídrica, recupere os tecidos danificados pela condição e controle o peso, quando necessário”, resume a expert em imagem corporal e transtornos alimentares.
Adriana costuma receitar aos seus pacientes um cardápio inspirado na dieta mediterrânea, baseada em alimentos frescos e naturais (frutas, verduras, legumes, cereais integrais e azeite) e fontes de gorduras mais saudáveis, como peixes e outras carnes magras. O bom espaço dedicado aos vegetais tem o objetivo de recrutar substâncias antioxidantes e anti-inflamatórias.
“Também é importante cuidar da microbiota intestinal e equilibrar a ingestão de colágeno, que age nos tecidos prejudicados pela doença”, diz a nutricionista. “E recomendo alguns chás que ajudam a melhorar o inchaço, a inflamação e a circulação, feitos de plantas como hibisco, cavalinha, gengibre e dente-de-leão, que inclusive podem ser misturados”, completa.
Um dos maiores erros, de acordo com Adriana, é apostar em dietas rígidas e restritivas, já que pessoas com lipedema têm maior tendência a desenvolver transtornos alimentares. “Elas não só não resolvem o problema como podem desencadear distúrbios como bulimia e anorexia”, alerta o psiquiatra Táki Cordás, coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP.
Cynthia Valerio ressalta que o diagnóstico inicial incorreto ou incompleto só piora as coisas por aqui. Ao ser classificada como obesa, a paciente encara culpa e frustração ao perceber que, apesar do esforço em seguir o tratamento indicado, não obtém os resultados desejados.
“Para complicar, a estratégia focada exclusivamente na perda de peso é mais eficaz para a região que não foi acometida pelo lipedema, o que deixa a enfermidade mais evidente, pois a silhueta fica ainda mais disforme”, relata a endocrinologista.
Nesse cenário, com preconceito e abalo da autoestima, sobra bastante para a saúde mental — e ansiedade, depressão e pânico podem invadir a rotina. “Existem estudos mostrando que entre 40 e 50% das pacientes sofrem com transtornos psiquiátricos”, atesta Cordás.
Isso só reforça o papel da assistência multidisciplinar, que precisa contar com psicólogos ou outros profissionais capacitados para atender as dificuldades emocionais. Esse apoio ajuda a combater a distorção da própria imagem corporal, aderir ao tratamento como um todo e prevenir ou controlar distúrbios psíquicos paralelos, fora o ganho de consciência e a aceitação do novo corpo após as intervenções propostas.
Na sala de cirurgia
Quando o lipedema atinge graus mais avançados, a solução também inclui cirurgias plásticas e vasculares. E diga-se de passagem que um número significativo de pessoas só encontrará uma saída ao passar pelo bisturi.
“Todas as medidas clínicas e comportamentais são importantes, mas, segundo o último Consenso Americano de Tratamento de Lipedema, a única técnica capaz de remover as células doentes é a cirurgia”, afirma Kamamoto. “Ela diminui o volume dos membros em até 40%. As pesquisas apontam que proporcionam menos desconfortos e mais qualidade de vida, e o acompanhamento das pacientes até oito anos depois do procedimento revela que esses benefícios se mantêm”, completa.
Veja: é o oposto do que se recomenda para a obesidade. Se para ela a lipoaspiração não faz tanta diferença, aqui a situação se inverte. “Estudos observacionais já demonstraram que a lipoaspiração reduz permanentemente o tecido adiposo atingido pela enfermidade e alivia os sintomas com raras complicações”, ressalta Mario Warde.
Infelizmente, porém, nem a rede pública nem os planos de saúde cobrem o método para essa finalidade. Ainda reina o senso comum de que não passaria de uma intervenção estética, o que não é verdade.
Na visão do médico, o equívoco só será desfeito com mais pesquisas de alta qualidade e a geração de evidências que apoiem a inclusão do tratamento cirúrgico no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os convênios.
Se já há desafios dessa ordem no setor privado, no público então nem se fala — o caminho até os procedimentos e a abordagem multiprofissional pode ser penoso.
E é para mudar esse panorama que labutam entidades como o Instituto Lipedema Brasil, que busca desenvolver novos estudos e ampliar a conscientização sobre a doença, o diagnóstico e o tratamento — a melhor forma de tirar a gordura de cena, e a vida voltar aos eixos.
Lipedema: a gordura fora de lugar Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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