sexta-feira, 1 de julho de 2022

Uma luz sobre uma doença rara

A saga pelo diagnóstico correto, o medo e a ansiedade diante do avanço da doença e a busca nem sempre tranquila pelo tratamento marcam a trajetória de brasileiros com polineuropatia amiloidótica familiar, conhecida pela sigla PAF-TTR e também por amiloidose hereditária relacionada à transtirretina com polineuropatia.

Os nomes soam estranhos a quem nunca ouviu falar, mas estão incorporados à rotina desafiadora de portadores e familiares que convivem com essa enfermidade genética rara. Lançando luz sobre a condição — que representa e exemplifica outros tantos problemas de saúde menos prevalentes, mas não por isso menos importantes —, VEJA SAÚDE conduziu um estudo com a participação da Associação Brasileira de Paramiloidose (ABPAR) e o apoio da PTC Therapeutics. A pesquisa ouviu quase 90 pessoas, 85% delas pacientes e as demais pais ou cuidadores, de 13 estados.

“A doença surge em indivíduos com uma alteração genética que faz com que o fígado produza uma proteína, a transtirretina, defeituosa”, explica o neurogeneticista Marcondes França Jr., da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Ela fica insolúvel no sangue e acaba se depositando nos tecidos. Dependendo do paciente, a doença se inicia com sintomas neurológicos, porque atinge diversos nervos. Esse é o grupo que denominamos com a sigla PAF”, completa.

“A condição é multissistêmica, mas os principais alvos são o sistema nervoso e o coração”, aponta o neurologista Wilson Marques Junior, professor da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto. “Geralmente, tudo começa com um formigamento ou uma sensação de queimação na planta dos pés. Depois se perde a sensibilidade local. Com o tempo, as manifestações chegam a braços e mãos e, em seguida, vêm a fraqueza muscular e a dificuldade de se equilibrar”, descreve.

De acordo com Liana Ferronato, presidente da ABPAR, a estimativa é que existam cerca de 3 mil brasileiros com PAF-TTR. O percurso até a confirmação do problema é uma das principais queixas levantadas pelo novo estudo: 55% dos entrevistados demoraram pelo menos um ano para obter o diagnóstico e 30% tiveram de consultar quatro ou mais médicos até o laudo correto.

“A partir da suspeita, o usual é realizar um teste genético, por sangue ou saliva, que revela a presença da mutação da doença”, diz França Jr. “Se esse exame ainda deixar dúvida, parte-se para uma biópsia para detectar o acúmulo da proteína TTR em algum tecido. Mas dificilmente chegamos a essa etapa hoje em dia”, acrescenta.

A falta de conhecimento sobre o quadro, inclusive entre a classe médica, é um dos fatores que limitam a procura ou indicação de um especialista.

<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital

Caminho para o tratamento

Embora haja uma peregrinação até o diagnóstico, 90% dos pacientes e familiares consideram que foram munidos com informações satisfatórias sobre a polineuropatia amiloidótica familiar no momento em que a condição foi confirmada. Mas, a partir daí, muitos deparam com barreiras para dar início ao tratamento — menos de 30% da amostra começou o plano terapêutico logo após a detecção.

“São frequentes os atrasos do governo na compra do único medicamento disponível para a doença na rede pública ou ocorrem problemas na distribuição pelas farmácias de alto custo”, observa Liana. “A pessoa já enfrentou todo um caminho até ter o diagnóstico e depois o direito ao remédio e, muitas vezes, não o encontra quando vai retirá-lo. Isso gera interrupção no tratamento, que precisa ser contínuo, e aumenta o risco de a doença continuar progredindo”, afirma a presidente da ABPAR.

No passado, a única abordagem para contornar a PAF-TTR era o transplante de fígado — já que o órgão fabrica as proteínas com defeito. As medicações surgiram em 2011 e hoje existem três tipos de fármacos, um deles fornecido pelo SUS. “Ele se liga à proteína defeituosa para que ela fique mais solúvel e não se deposite nos tecidos. Ou seja, é um estabilizador da transtirretina, idealmente indicado na fase mais precoce da doença”., explica França Jr.

Os dois outros medicamentos aprovados atuam reduzindo a produção da tal TTR anormal no fígado. São os silenciadores, em geral prescritos a estágios mais avançados. Como não foram incorporados ao sistema público, a situação de quem depende deles é ainda mais complicada — como reportam 45% dos respondentes da nova pesquisa.

Outro obstáculo na assistência aos brasileiros com PAF-TTR é o acesso ao time de profissionais de saúde que ajuda a preservar a qualidade de vida à medida que a enfermidade evolui. No estudo, mais de 40% do público relata não estar satisfeito com o tratamento multidisciplinar oferecido. “A reabilitação da doença exige fisioterapia, uso de órteses, palmilhas, bengala…”, nota França Jr.

“Pacientes com neuropatia frequentemente apresentam diarreia grave e emagrecem. Então o acompanhamento com nutricionista é fundamental. Sem contar o apoio psicológico, tão necessário a quem tem uma doença crônica degenerativa”, continua.

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O professor da Unicamp toca num ponto crítico documentado pela sondagem: a sobrecarga emocional. Para muitos pacientes e cuidadores, a ansiedade e o estresse abalam significativamente a rotina — até mais que sintomas físicos, como fadiga ou dores incapacitantes.

<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital

Herança e acolhimento

A exemplo da maior parte das doenças raras, a herança genética é fator preponderante no surgimento da PAF-TTR. Praticamente todos os entrevistados têm algum familiar próximo com a condição — cuja origem já foi traçada até uma região de Portugal.

“Estamos falando de uma doença autossômica dominante. Isto é, se a pessoa tem um gene com a mutação, ela pode aparecer. E cada filho dela nasce com 50% de probabilidade de ter também”, esclarece Marques Junior. “Mas nem sempre ter esse gene significa que o indivíduo vai desenvolver a doença. Ele pode ser um portador assintomático e passar a vida inteira assim”, elucida o professor da USP de Ribeirão Preto.

Entre os participantes do levantamento, 80% têm filhos e 40% desses ainda não iniciaram a investigação para checar se os descendentes também carregam a mutação. “O aconselhamento genético é um processo importante que deve ser abordado com cuidado. A testagem só é feita a partir dos 18 anos, e o médico deve orientar e dar suporte para a tomada de decisão, tendo em vista o impacto psicológico de saber que se pode vir a ter a doença no futuro”, resume Marques Junior.

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“A prática mostra que, em geral, depois de adequadamente informados, pacientes e filhos acabam decidindo pela investigação, até porque hoje estamos num cenário no qual existem remédios capazes de ajudar. Então é possível fazer o acompanhamento e entrar com o tratamento se a doença se manifestar”, expõe França Jr.

Outro impacto considerável na família dos brasileiros com PAF-TTR é o financeiro. Para mais de 60% dos entrevistados, esse aspecto ganha corpo em razão da paralisação das atividades profissionais do paciente ou de quem passa a ser seu cuidador à medida que o quadro progride, além da necessidade de contratação de pessoas para auxiliar no cuidado e dos gastos com remédios e deslocamentos para consultas.

<span class="hidden">–</span>Infográfico: André Moscatelli/SAÚDE é Vital

Diante dessas repercussões e demandas não atendidas, 75% dos respondentes avaliam que o país não está preparado para atender direito as pessoas com PAF-TTR, clamando por melhoras na assistência e na agilidade dos serviços públicos de saúde. “Essa é uma das doenças raras para as quais tem havido mais progressos em termos de terapias inovadoras. Em contrapartida, é preciso ampliar o diagnóstico precoce e o acesso a novos medicamentos com mais rapidez”, analisa o professor da Unicamp.

Fazer pontes e encurtar caminhos são algumas das razões de existir das entidades que dão suporte às famílias frente a uma doença rara, caso da ABPAR. Ela ajuda os pacientes a encontrar especialistas, centros de referência e tratamentos. “É um apoio que torna a doença menos misteriosa e menos difícil”, defende Liana.

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