segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Rápido e devagar: os paradoxos do tempo na medicina

Filmes, livros, séries, quadrinhos… Não faltam obras de ficção explorando o paradoxo temporal, com direito a personagens viajando pelo tempo para alterar fatos do passado a fim de modificar o futuro. Na realidade da atividade médica, o paradoxo temporal diz respeito aos minutos ou às horas que devemos dedicar ao paciente no presente para modificar seu futuro, ou seja, cuidar adequadamente do problema que o trouxe até nós e buscar remediá-lo ou minimizá-lo.

Nesse contexto, o que às vezes pode parecer gasto de tempo é, na verdade, um investimento. Investimento porque vai se refletir em ganhos na qualidade da assistência ao paciente e na melhor gestão do tempo do médico e da equipe de saúde, uma vez que informações úteis a um diagnóstico ou tratamento mais preciso foram captadas e as orientações pertinentes foram dadas no momento certo.

Porém, quando o profissional acha que está economizando tempo com uma consulta rápida e acredita que vai resolver tudo só pedindo exames incorre em dois pecados. Um é deixar de ouvir o paciente e investigar seus sintomas, fiando-se apenas nos resultados dos exames como guia para o diagnóstico ou o tratamento. O outro é o desperdício de recursos que impacta a sustentabilidade do sistema de saúde, inflando custos com exames desnecessários.

Aqui precisamos questionar: quantas doenças não podem ser diagnosticadas clinicamente? Não há ressonância magnética que aponte a causa de uma enxaqueca, por exemplo. Da mesma forma, nenhum exame laboratorial ou de imagem decifrará o gatilho de doenças que têm componentes psicossomáticos, como as gastrites e a síndrome do intestino irritável.

+ LEIA TAMBÉM: Outras colunas do doutor Sidney Klajner

Ouvir o paciente, explicar o diagnóstico e as opções de tratamento, exercitar a empatia para ajudar em suas dores (físicas e emocionais), orientá-lo e esclarecer dúvidas são aspectos que fazem parte do cuidado tanto quanto a aplicação objetiva dos conhecimentos técnicos do médico. Mas quanto tempo é preciso dedicar a isso? Respondo: o tempo adequado a cada caso.

Vou dar um exemplo simples, comum em meu consultório: o da cirurgia de hemorroida, que costuma atemorizar o paciente por causa do desconforto do pós-operatório. Se antes do procedimento ele já for informado de que poderá sentir dor, mas que irá para casa com um arsenal de medidas para lidar com ela — orientação para banho de assento e prescrição de laxantes, analgésicos, anti-inflamatórios ou mais uma medicação se tiver uma dor muito intensa —, tudo muda de figura.

O indivíduo se sentirá mais seguro por saber o que fazer e vai sentir menos dor, porque dor também depende de ansiedade. Com isso, o tempo “gasto” nas orientações prévias vira tempo ganho depois. Sem essas instruções, o paciente estaria ligando para se queixar da dor e pedindo ajuda, podendo até mesmo se deslocar até um hospital sem necessidade.

Há um estudo de pesquisadores do Beth Israel Deaconess Medical Center, nos Estados Unidos, com resultados bem curiosos. O trabalho envolveu pacientes com síndrome do intestino irritável, um distúrbio dos movimentos intestinais que provoca cólicas, prisão de ventre e/ou diarreia e é disparado por gatilhos emocionais. Não evolui para nenhuma condição mais grave, mas impacta a qualidade de vida.

Nessa pesquisa, os pacientes foram divididos aleatoriamente em grupos: um recebeu placebo (comprimido sem princípio ativo) e foi informado disso; outros dois receberam medicação ou pílulas de hortelã com formato igual à do remédio, sem saber quem estava tomando o quê. Adivinhe qual grupo apresentou melhora ao cabo de seis meses.

Continua após a publicidade

Todos! A explicação mais plausível é que os voluntários em geral se beneficiaram das conversas regulares com os médicos nos retornos periódicos realizados durante o experimento.

Dedicar o tempo adequado ao relacionamento com o paciente tem a ver com a própria qualidade da formação médica, que precisa combinar o lado técnico e o humanístico. Com isso, o profissional saberá ajustar a janela necessária tanto para obter as informações relevantes para fazer o diagnóstico e propor o tratamento como para exercer seu papel de acolhimento. Essa relação, vale lembrar, inclui também os familiares.

BUSCA DE MEDICAMENTOS Informações Legais

DISTRIBUÍDO POR

Consulte remédios com os melhores preços

Favor usar palavras com mais de dois caracteres
DISTRIBUÍDO POR

Alguns acreditam que a transformação digital diminuirá o tempo da consulta e que algoritmos tomarão decisões no lugar do médico. É uma visão equivocada.

Soluções tecnológicas ajudam a poupar tempo com aquilo que não agrega valor — por exemplo, facilitando o preenchimento do prontuário ou apresentando um gráfico com resultados de todos os exames do paciente ao longo dos anos, o que dispensa o trabalho de checar o histórico item por item. Os recursos digitais liberam tempo para o médico cuidar do paciente utilizando aquilo que realmente faz diferença: suas competências técnicas, bem como sua empatia e sensibilidade.

Eu costumo dizer que metade do tratamento é a atenção que dedicamos ao paciente (e familiares); o restante é a aplicação do conhecimento técnico. A transformação digital ajuda a ganhar tempo para nos dedicarmos a essas duas metades que, somadas, permitem fazer o atendimento como ele deve ser.

Urgências e tomadas rápidas de decisão fazem parte do dia a dia de médicos e cirurgiões. Mas, no relacionamento com o paciente e seu entorno, o ritmo não pode seguir acelerado.

Precisamos de tempo para interagir, examinar e dar apoio. Cabe ao médico, que abraçou essa carreira tão direcionada ao cuidado com o outro, dispor de tempo para isso. E cabe ao paciente exigir do médico esse tempo.

Compartilhe essa matéria via:
Continua após a publicidade

Rápido e devagar: os paradoxos do tempo na medicina Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário