Dia 3 de maio. Até o século 19, essa era a data oficial do Descobrimento. O equívoco surgiu de um raciocínio do historiador português Gaspar Correia (1495–1561). Sem registros disponíveis que apontassem a data exata, ele foi no chute. E concluiu o seguinte: como os primeiros nomes do Brasil foram Ilha de Santa Cruz e Terra de Santa Cruz, provavelmente seria uma homenagem ao Dia da Santa Cruz, celebrado em… 3 de maio.
Só virou 22 de abril depois que a família real portuguesa veio para cá, fugindo de Napoleão e trazendo na bagagem um documento até então mantido em sigilo: a carta de Pero Vaz de Caminha. Em 1817, ela pôde ser impressa e veio a público – mais de três séculos após ter sido escrita detalhando as circunstâncias daqueles eventos extraordinários de 1500.
Antes, ninguém podia cravar com certeza quando os navios portugueses chegaram às nossas praias, Frei Coimbra rezou a primeira missa em solo nordestino, e nossos futuros colonizadores tiveram a visão inédita das populações nativas andando, nas palavras de Caminha, com “suas vergonhas tão nuas”.
O escrivão apontou o dia certo em seu relato ao rei de Portugal, Dom Manoel 1º, mas a monarquia escondeu essa certidão de nascimento do Brasil. A ideia era não vazar informações para a Espanha – sua concorrente na reivindicação de terras ainda não descobertas no Atlântico Sul desde o Tratado de Tordesilhas, em 1494.
Quando a carta ganhou publicidade, mais de três séculos depois, outra correção aconteceu: Pedro Álvares Cabral, figura esquecida pelos portugueses, emergiu com a importância que lhe era devida. E se tornou o Cabral dos livros de história graças ao empenho do último imperador que tivemos.
Dom Pedro 2º desejava construir uma biografia oficial do Brasil, algo que ainda não existia. Então colocou o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, para ir atrás de mais informações sobre o cara por trás do Descobrimento.
As pesquisas de Varnhagen o levaram a uma pequena cidade – ainda hoje de aspecto gótico – no interior de Portugal: Santarém. Foi lá, dentro da Igreja Nossa Senhora da Graça, que o visconde achou, em 1839, o lugar onde Cabral estava sepultado. Mas não porque o local desse visibilidade à presença ilustre de seus restos mortais. Pelo contrário: ele estava enterrado com a família num túmulo mal preservado, cheio de mato em volta, e identificado apenas pelo nome de sua esposa, Isabel de Castro, descendente de um rei português do século 14 (D. Fernando 1º, 1345–1383).
Ou seja, para os portugueses de 1520, quando o descobridor do Brasil morreu, a mulher de Cabral era mais importante que ele. E, até que a carta de Caminha viesse à luz, ninguém apareceu para dizer o contrário.
Quando, em 1882, seu corpo foi exumado, surgiu o esqueleto de um homem de 1,90 m. Uma altura imponente, que certamente contribuiu para que se fizesse respeitar pela multidão que comandou em 1500, na mais portentosa frota que Portugal já havia lançado ao mar. A missão: dar protagonismo aos portugueses em relações comerciais na Índia. E, não menos importante, trazer a maior quantidade possível das valiosas especiarias (temperos diversos) que só se encontravam na Ásia…
… E também corrigir erros da missão anterior
Não seria a primeira tentativa. Três anos antes, Vasco da Gama já havia partido para a Índia, seguindo o caminho apontado por outro português, Bartolomeu Dias. Em 1488, Dias tinha mostrado que era possível chegar à Ásia contornando o extremo sul do continente africano – trecho que chamou de Cabo das Tormentas, por ter chegado lá após tempestades violentas, mas que seria renomeado com o mais otimista Cabo da Boa Esperança.
A “esperança” em questão era comprar especiarias direto na fonte, a uma fração do preço das rotas por terra, tocadas por mercadores árabes. E vender com lucros exorbitantes numa Europa disposta a pagar 50 gramas de ouro por saca de pimenta-do-reino (coisa de R$ 20 mil em valores de hoje).
Bartolomeu Dias voltou a Portugal após a descoberta do Cabo. Vasco partiria de Lisboa nove anos depois, em 1497, com a missão de, aí sim, chegar à Índia. E conseguiu um feito: navegou por mais de 10 mil quilômetros para alcançar a cidade que era o principal alvo de Portugal: Calicute, na costa ocidental da Índia, de onde saía boa parte das rotas terrestres. Mas chegou ali com objetos de troca que fizeram rir os líderes do local: basicamente roupas, seis bacias para lavar as mãos, uma caixa de açúcar, uma barrica com mel e outra com azeite. Parecia uma afronta diante de um mercado tão rico. Resultado: acabou voltando para Portugal com minguadas sacas de pimenta-do-reino, cravo, canela e gengibre.
Mas isso não teve importância. Empolgado com a perspectiva de que a viagem era possível, Dom Manoel 1º então mandou organizar uma nova armada, desta vez com ostentação capaz de convencer os soberanos de Calicute a aceitar os portugueses como parceiros de negócio. Foi para essa jornada grandiosa que ele convocou Pedro Álvares Cabral.
Entre os 32 e 33 anos (seu aniversário é desconhecido), Cabral não era navegador e não tinha experiência alguma em comandar uma frota naval. Mesmo assim foi nomeado capitão-mor dessa expedição em fevereiro de 1500. Seu “currículo” se limitava a fazer parte da nobreza de Portugal, e aqui vale uma explicação: mais por política que por bom senso, era comum à época que os reis dessem o comando das Grandes Navegações a fidalgos (termo que significa “filho de alguém importante”).
A frota toda era composta por 13 embarcações: nove naus, três caravelas e uma naveta de mantimentos. Enquanto as caravelas, mais rápidas e ágeis, mediam 22 metros de comprimento, as naus eram bem maiores: podiam chegar a 35 metros, com a capacidade de levar quase o dobro de gente. E se a aventura de Vasco da Gama não chegou a juntar duas centenas de homens, a tripulação de Cabral foi organizada para impressionar: 1.500 indivíduos. Quase a metade formada por soldados.
O rei português também não economizou no pagamento para o líder da viagem. Cabral recebeu 10 mil cruzados, o equivalente a US$ 1 milhão em dinheiro de hoje. E os cofres dos navios foram abarrotados de moedas de ouro para o comércio na Índia.
No caminho, o Brasil
A partida foi marcada para 8 de março de 1500, um domingo. A capela da ermida de São Jerônimo, às margens do Rio Tejo, perto de onde saíam os navios, recebeu o próprio rei naquela manhã. Lá também estavam os banqueiros financiadores da expedição: a Coroa sozinha não dava conta do empreendimento. As Grandes Navegações foram uma parceria público-privada.
Mas a direção do vento mudou naquela tarde, adiando para o dia seguinte a partida da expedição. Aí, sim, ao meio-dia de uma segunda-feira, 9 de março de 1500, a frota zarpava rumo à Índia. E já no começo teve um susto: à altura das ilhas de Cabo Verde, uma das naus simplesmente desapareceu – nada fora do comum nas missões marítimas entre os séculos 15 e 16. Depois de alguma procura, os capitães mantiveram sua missão.
Só que aí você sabe: no meio do caminho houve uma parada imprevista 44 dias depois da partida, o grupo de navios lançava suas âncoras onde hoje fica a Bahia. Se foi mesmo imprevista ou não, é uma das maiores discussões entre os historiadores. Mas vamos nos limitar apenas aos fatos aqui: o documento com a ordem do rei para a missão de Cabral só diz que ele deveria ir para a Índia. A estratégia da expedição estava bem definida, havia muito dinheiro em jogo visando tão somente às especiarias… Então, mesmo que desconfiasse da existência de um Brasil a descobrir (navegações anteriores não paravam de encontrar novas terras deste lado do Atlântico), por que Cabral arriscaria a missão e sua reputação? Não faria sentido. Tanto que a parada foi curta.
A frota só passou dez dias por aqui, já que seu destino era a Índia. Para o evento não passar em branco, a naveta de mantimentos foi mandada de volta a Portugal. O retorno era para comunicar o “achamento” ao rei, levando consigo a carta de Pero Vaz de Caminha. Também carregava toras de pau-brasil, plantas recolhidas na nova terra e artefatos indígenas, como arcos, flechas e cocares. Duas araras fizeram sucesso na Europa, que nunca tinha visto ave semelhante.
África e, enfim, Índia
No dia 2 de maio, a armada retomou seu trajeto a Calicute, descendo o Atlântico junto à costa brasileira e então desviou para o leste rumo aos perigos do Cabo da Boa Esperança. Um temor, aliás, que comprovaria sua razão de ser.
Perto dessa curva no sul da África, uma tempestade afundou quatro navios da expedição, afogando cerca de 400 homens. “O vento parecia constante, atrás deles, quando foram atingidos pela proa por uma borrasca”, afirma Roger Crowley, autor de Conquistadores – Como Portugal forjou o primeiro império global. Por ironia do destino, dentre os mortos estava justamente Bartolomeu Dias, o pioneiro a vencer esse cabo 12 anos antes.
Nessa mesma tempestade, o navio do irmão de Bartolomeu, Diogo Dias, foi afastado do grupo devido à força dos ventos e se perdeu. Foi parar numa ilha até então desconhecida, na costa sudeste da África. Havia descoberto Madagascar.
Os navios restantes, muito machucados, chegaram a Quíloa, uma ilha na costa da atual Tanzânia, em 26 de maio. Ali havia um comércio em que o forte era a troca de ouro do Zimbábue e marfim da África Ocidental por tecidos, porcelanas, joias e… especiarias da Ásia. Só que não rolou nada. Cabral bem que tentou um acordo com o governante local, mas os africanos islâmicos não quiseram conversa com o português.
De Quíloa, a expedição partiu para Melinde, cidade fundada por mercadores suaílis, na costa de onde hoje fica o Quênia. Assim como Vasco da Gama, anos antes, Cabral aproveitou a parada para conseguir um piloto nativo que guiasse sua frota até Calicute. E, ufa, a combinação deu certo. Finalmente, em 13 de setembro, a missão chegava ao que era seu destino desde o início: o mais importante centro de comércio da costa ocidental da Índia.
Efeito da bajulação durou pouco
Era em Calicute que mercadores árabes e chineses negociavam havia séculos. Mas os europeus que chegassem tinham de lidar com o governante, o samorim (adaptação portuguesa para samutiri, “o grande senhor do mar”). Cabral, bem abastecido, chegou com moedas de ouro, objetos de prata, almofadas de veludo, tapetes ornamentais.
O conjunto de agrados deixou o governante mais bem impressionado do que as quinquilharias de Vasco. E assim, em troca, os portugueses ganharam autorização para construir uma feitoria (entreposto comercial fortificado por soldados) e um armazém na cidade. Durante três meses, os homens da armada permaneceram em Calicute, e parecia que tudo ia de vento em popa. Até que o humor local azedou.
Quem controlava as principais rotas comerciais do Oceano Índico eram os mercadores muçulmanos, e o progresso daqueles estrangeiros cristãos não foi visto com bons olhos. Uma tensão crescente culminou num ataque-surpresa à feitoria recém-instalada. Nesse conflito, 50 portugueses morreram, incluindo o escrivão Pero Vaz de Caminha.
A uma reação imediata, Cabral preferiu aguardar alguns dias por um pedido de desculpas do samorim. Afinal, romper com as lideranças da cidade não seria bom para os negócios. O problema é que essas desculpas nunca chegaram – nem uma garantia de que outros atos de terrorismo não viriam em seguida. O português, então, resolveu não deixar barato. Ordenou o ataque e o saque de dez navios mercantes árabes, assassinando 600 tripulantes. E foi além: bombardeou Calicute por dois dias. Essa pequena guerra, claro, arruinou qualquer possibilidade de manter o comércio por lá. Mas nem tudo estava perdido. Pelo contrário.
Saindo às pressas da zona de conflito, sua expedição foi para outra cidade mais ao Sul: Cochim. E ali houve harmonia nos interesses de lado a lado. A cidade era território vassalo de Calicute e queria se libertar do domínio do samorim. O líder local imediatamente autorizou a instalação de uma feitoria portuguesa, e foi ali, não na prestigiada Calicute, que Cabral fez a festa: encheu seus navios com especiarias preciosas.
Missão cumprida, era hora de voltar. Em janeiro de 1501, nove meses após a partida de Lisboa, a expedição finalmente tomava o caminho de volta.
Um retorno que não rolaria sem percalços. Na costa da África, um dos navios encalhou num banco de areia e começou a afundar. Como os outros já estavam cheios, Cabral decidiu o que parecia a única coisa a fazer: abandonar essa parte de carga valiosa embarcada.
Já na altura de onde hoje fica o Senegal, a frota, então reduzida a cinco navios, reencontrou a nau de Diogo Dias, aquela que tinha desgarrado no Cabo da Boa Esperança. Mas foi como ver um navio-fantasma. Ou quase. Só restavam sete homens a bordo, doentes e à beira de morrer de fome. Um deles de fato morreu, mas de emoção ao constatar que seria resgatado.
Finalmente, em junho de 1501, Pedro Álvares Cabral adentrou o Rio Tejo, em Lisboa. Dos 1.500 homens que haviam partido, cerca de 500 retornaram vivos. Mas essa era uma taxa de perda comum para uma época em que navegações transoceânicas equivaliam a viagens espaciais. O ponto é que ele foi acolhido com a pompa de quem conseguira aumentar as riquezas do governo e dos investidores privados. “O rei o recebeu em Santarém, em seu suntuoso palácio de verão”, conta o historiador Eduardo Bueno, no livro A Viagem do Descobrimento. As 700 toneladas de especiarias que trouxe renderam um lucro de 800%, e inflamaram os europeus a novas travessias, que redesenhariam o mapa-múndi.
No fim, o ostracismo
Informado do conflito em Calicute, Dom Manoel 1º logo começou a armar uma “Esquadra da Vingança”. Queria retomar a rota Atlântico-Índico e chegar à cidade asiática com todo o poderio bélico que uma armada pudesse levar.
Mas, para a chefia dessa expedição, o rei preferiu Vasco da Gama, já famosíssimo por ter sido o primeiro a chegar por mar a Calicute. Cabral ficaria em segundo plano, num cargo de subcomandante. Sentindo-se humilhado, teve a ousadia de recusar a oferta. Foi o suficiente para virar persona non grata diante da monarquia portuguesa – que nunca mais lhe deu uma missão.
Quase nada se sabe de sua vida entre 1501 e 1520, quando morreu. Só que teve o casamento com Isabel de Castro, uma nobre com mais sangue azul, e dinheiro, do que ele, em 1503. Pedro Álvares Cabral virou página virada na história de Portugal. Caiu no obscurantismo e só “ressuscitou” pela vontade de Dom Pedro 2º contar a história de um país com raras evidências sobre seu passado.
Os republicanos do começo do século 20 deram continuidade a esse resgate: em 1903, conseguiram que fragmentos da ossada do português viessem para o Brasil. Hoje esse pequeno conjunto de ossos está reunido num caixão pequenino, dentro da Igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, no centro do Rio de Janeiro.
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