EEram 9 da noite de uma terça-feira, em São Francisco, quando eu chamei um carro na porta de um restaurante a alguns quarteirões do Golden Gate Park. Alguns minutos depois, enquanto eu esperava num semáforo fechado, uma Mercedes branca parou do meu lado.
Nela havia três adolescentes, com as cabeças para fora do teto solar. Um deles apontou para o banco do motorista do meu carro, que estava vazio.
“Quem está dirigindo?”, gritou ele.
“Ninguém”, gritei de volta.
Eu estava em um carro operado pela Cruise, uma subsidiária da General Motors que começou a oferecer o serviço de táxi autônomo para um número limitado de pessoas sortudas, e corajosas, em São Francisco.
Há quase uma década, várias empresas vêm prometendo que em poucos anos os carros autônomos ganharão as ruas das cidades. Mas esses poucos anos, aparentemente, sempre viram mais alguns anos. E, enquanto essas empresas lutam para aperfeiçoar seus carros, fico pensando se elas algum dia conseguirão transformá-los em um negócio viável, dado o enorme custo de fabricar e operar os veículos.
O nosso carro naquela noite de setembro, um pequeno Chevy Bolt cheio de sensores no teto, soube mudar de faixa sozinho. Ele esperou até que pessoas e seus cachorros atravessassem a faixa de pedestres. Desviou de carros que estavam parados no meio da rua, com o pisca-alerta ligado.
Sabe aquelas cenas de filme, em que os carros cantam pneu em perseguições velozes? Agora imagine o oposto e você terá uma noção de como o táxi dirigiu, subindo e descendo com cautela as ruas íngremes de São Francisco, atravessando cruzamentos com cuidado e se esquivando de carros parados em fila dupla.
Mesmo assim, e mesmo para alguém como eu – um repórter que passou bastante tempo com esse tipo de tecnologia ao longo dos últimos anos –, andar por uma cidade grande em um carro autônomo foi uma verdadeira revelação.
Não que não tenha havido problemas. Assim que o carro passou por aquela Mercedes com os adolescentes uma segunda vez, ele virou com tudo para a direita, presumivelmente porque confundiu os garotos com pedestres.
Em outro cruzamento, ele pisou no freio bem na hora em que o sinal ficou vermelho, e derrapou até parar bem em cima da faixa de pedestres. Um pedestre xingou o carro, e fez um sinal obsceno, nesse momento. Não sei se isso foi mais satisfatório ou menos do que xingar um motorista humano.
E aí, quando nós pegamos um pouco de trânsito, o carro detectou um possível acidente na rua e parou. Era um alarme falso, mas mesmo assim o Cruise não queria mais andar. Minha viagem terminava ali.
Um dia todo mundo poderá andar de carro autônomo. A Cruise, que pretende expandir seu serviço para as cidades de Austin e Phoenix até o final do ano, é apenas uma de várias empresas desenvolvendo serviços de táxi robótico em grandes cidades dos EUA.
A Waymo, uma subsidiária do Google, está preparando seu lançamento em São Francisco. A Argo AI, que é financiada pela Ford e pela Volkswagen, rodou entre 2019 e 2022 em Austin e Miami. A Motional, que tem o apoio da Hyundai, está focando em Las Vegas.
Mas a tecnologia ainda não está pronta. A Waymo opera desde 2019 um serviço de táxi autônomo nos subúrbios de Phoenix, onde as ruas são largas e há poucos pedestres. Mas São Francisco, com suas grandes ladeiras e ruas estreitas e congestionadas… com a possível exceção da Times Square, em Nova York, não há nenhum lugar onde é tão difícil de dirigir quanto aqui. [Nota do tradutor: ele não conhece a Marginal Tietê, em São Paulo.]
Atualmente, a Cruise opera com 30 carros, apenas numa certa região de São Francisco e só entre as 10 da noite e as 5h30 da manhã, quando o trânsito é relativamente leve. Seus veículos não passam de 50 km/h, e eles não trabalham sob chuva forte, neblina ou neve.
A Cruise e a Waymo pretendem expandir seus serviços em São Francisco, atendendo mais pessoas em mais bairros e horários do dia. E os táxis robóticos eventualmente chegarão a mais cidades do chamado Cinturão do Sol [região que abrange todo o Sul dos EUA], onde raramente neva e as autoridades costumam ser boazinhas com as empresas de carro autônomo. Mas isso levará tempo.
O lançamento de cada novo serviço, em cada cidade, requer meses de preparação – sem falar nas negociações com o governo local. E, mesmo depois de testes exaustivos, os carros vão acabar encontrando situações com as quais eles simplesmente não sabem lidar. Aí, para a Cruise e as demais empresas do setor, a pergunta será: o que vai acontecer?
Os carros confusos
Algumas horas antes da minha viagem, a Cruise organizou um pequeno evento para jornalistas em sua sede, no centro de São Francisco. O CEO da empresa, Kyle Vogt, estava convidando os repórteres para andar em carros realmente autônomos pela primeira vez – os veículos robóticos costumam ter a bordo um motorista humano, pronto para assumir o controle se algo der errado.
Vogt advertiu que seus táxis poderiam ficar “confusos” em certas situações, e que se isso acontecesse a empresa, que estava monitorando tudo à distância, poderia ter de enviar técnicos para ir buscá-los. Esses incidentes são extremamente raros, disse ele.
Os carros são bem competentes em lidar com a maioria das coisas que acontecem na rua – congestionamentos, mudanças de faixa, conversões à direita. Mas outras situações são mais difíceis: conversões à esquerda [nota do tradutor: todos os veículos autônomos têm problemas com essa manobra, na qual é preciso evitar o fluxo de carros que vêm na contramão], pessoas atravessando fora da faixa e, como eu logo descobriria, até mesmo uma pequena câmera apontando para fora da janela. Mas estou me precipitando. Vamos começar do começo.
Em 3 de junho, dois dias depois que as autoridades da Califórnia autorizaram a Cruise a operar comercialmente sem motorista, um de seus carros estava levando um passageiro pela Geary Boulevard, uma avenida no bairro Richmond, em São Francisco – não muito longe da região onde eu andei no táxi autônomo –, até que ele chegou a um cruzamento. O sinal estava verde, e o carro começou a virar à esquerda para pegar uma rua lateral.
Um Toyota Prius, guiado por um motorista humano, se aproximou do cruzamento na outra direção, e aí o carro da Cruise parou, assumindo que o Prius também iria virar ali. Mas o Toyota seguiu reto, atravessando o cruzamento. Os dois carros bateram.
O Prius, que estava a 65 km/h numa zona onde o limite é 40 km/h, foi parcialmente responsável pelo acidente, de acordo com uma análise da batida. Os ocupantes de ambos os veículos sofreram ferimentos leves, e receberam atendimento médico.
Esse incidente mostrou o tipo de situação complicada que os carros autônomos inevitavelmente encontram nas ruas urbanas. O governo dos EUA ordenou que a Cruise revisasse seu software, e a empresa suspendeu temporariamente as conversões à esquerda em sua frota, enquanto atualizava os carros para torná-los capazes de lidar com eventos similares.
Impressionante e estressante
Minha viagem começou na porta de um restaurante chamado Bistro Central Parc. Um funcionário da Cruise me disse que eu precisava baixar o app da empresa para chamar um carro. Mas eu não conseguia. Eu tenho um Android, e o aplicativo só roda em iPhone. Então a empresa me emprestou um smartphone.
A Cruise iniciou o serviço uma hora mais cedo, para os jornalistas. Às 9 em ponto, eu chamei um carro para ir até a Catedral Grace, no bairro de Nob Hill, a uns cinco quilômetros dali.
O fotógrafo Jason Henry me acompanhou na corrida, que segundo o aplicativo duraria 21 minutos – ou 50% mais tempo do que um Uber, com motorista, levaria naquele trajeto. A vida é mais lenta quando você não pode passar de 50 km/h.
Quando o carro chegou, alguns minutos depois, nós sentamos no banco de trás (os passageiros não podem ficar no banco da frente) e, logo em seguida, uma voz nos cumprimentou pelo sistema de som do carro.
Era um funcionário do suporte técnico da Cruise, perguntando se nós precisávamos de alguma ajuda para fazer o carro andar. Aparentemente, nós estávamos demorando muito para começar – é que Henry estava fotografando o veículo por dentro e por fora.
Respondemos que não precisávamos de ajuda, apertamos um grande botão vermelho em um tablet embutido no banco do carro, e começamos a andar num ritmo que parecia incrivelmente lento se comparado ao típico motorista de Uber. Uma mensagem automática nos avisou para não colocar as mãos ou os braços para fora das janelas do carro.
A viagem foi impressionante, desconcertante e um pouco estressante. Era mais ou menos como estar num carro com a minha filha de 16 anos enquanto ela aprendia a dirigir, só que mais inquietante (minha filha pelo menos podia responder aos meus acessos de pânico).
Quando você está sentado no banco de trás, atrás de uma divisória de plástico como nos táxis de Nova York, o banco da frente do Cruise parece com o de qualquer carro – exceto pelo fato de que não há ninguém sentado nele. No banco de trás, acima dos dois tablets, há um botão para você chamar o suporte técnico, e um viva-voz para falar com ele. É só isso.
O carro se comportou como um motorista respeitoso. Quando pessoas atravessaram a faixa de pedestres na sua frente [com o sinal aberto], ele respondeu com aparente confiança, andando bem devagarinho até o momento em que seu caminho ficou desobstruído, e ele acelerou.
Quando o táxi encontrou uma obra na rua, demarcada com cones de plástico e uma grande seta amarela, ele desviou corretamente, esperando que outro carro o ultrapassasse antes de fazer a manobra.
E parou, mais de uma vez, para pedestres que ameaçavam atravessar a rua – embora, ao fazer isso, ele tenha dado trancos em nós dois no banco de trás. O Cruise também tinha o hábito de desacelerar no meio de quarteirões vazios, sem motivo aparente. Talvez ele tenha visto alguma coisa que eu não notei – várias e várias vezes.
Aí, quando estávamos voltando para o restaurante, e já tínhamos rodado uns 8 km, pegamos a Geary Boulevard. A ideia era virar à esquerda e entrar na avenida Van Ness, com um grande cruzamento. Queríamos ver como o carro iria se sair ali, um dos pontos mais movimentados da cidade – e cheio de pedestres para uma noite de terça-feira.
Durante boa parte do trajeto, o carro parecia preferir ruas laterais em vez de pegar avenidas, e com isso evitava trânsito pesado e conversões à esquerda. Mas, conforme nos aproximamos da Van Ness, a pista ficou cheia de carros na frente e atrás de nós. Subitamente, o Cruise desistiu de virar, e encostou na guia.
“Potencial colisão detectada”, disse uma voz robótica. Logo antes de o carro encostar, Henry tinha abaixado sua janela até a metade, e apoiado nela seu iPhone. Ele queria capturar melhor o que estava acontecendo em volta do carro. Um funcionário da Cruise nos disse, depois, que aquilo tinha assustado o carro.
O problema é que o iPhone estava num mini- tripé, e uma das perninhas dele ficou para fora da janela. A empresa diz que seus carros estacionam, e não continuam, se um objeto estiver “se projetando de forma insegura” para fora da janela – ou se alguém tentar colocar o corpo para fora dela. Mas isso não deve acontecer, afirma a Cruise, se um passageiro esticar a mão para acenar a um amigo.
Os carros são projetados para encostar quando as coisas dão errado. Em abril, policiais pararam um carro da Cruise ao notar que ele não estava com os faróis acesos. O veículo pareceu tentar fugir dos policiais conforme eles se aproximavam. Na verdade, estava manobrando para encostar na guia – como fez ao detectar o iPhone.
Depois que nosso carro parou, uma voz perguntou se estávamos bem, e disse que a viagem continuaria em instantes. Isso não aconteceu. Alguns minutos depois, a voz disse que nós devíamos descer. Um técnico da Cruise teria que vir para checar o que estava acontecendo.
A empresa afirma que isso é um protocolo padrão, mas ela já teve problemas com veículos empacados. No final de junho, muitos dos carros da Cruise foram para a mesma rua, pararam, e travaram o trânsito no centro de São Francisco.
Nos meses seguintes, os veículos da empresa continuaram a causar incidentes similares em vários pontos da cidade. Mesmo que sejam capazes de andar sem motorista, eles ainda precisam de ajuda humana de vez em quando. Às vezes, os técnicos conseguem resolver tudo à distância. Em outras, precisam ir até os veículos.
Isso custa dinheiro. E, para analistas do setor, coloca em dúvida se os táxis robóticos um dia serão mais baratos que os tradicionais. Equipados com sensores especiais, chips de computador e outras tecnologias, os carros autônomos são muito mais caros do que o Uber médio. E os gastos com software, datacenters e suporte técnico são altos. A Cruise teve prejuízo de US$ 860 milhões só no primeiro semestre de 2022. Um dia, esses custos poderão diminuir.
Depois que nós descemos e fechamos as portas, o carro parecia solitário. Ele não podia fazer nada, só esperar por ajuda. Mas eu ainda tinha aquele smartphone emprestado. Então chamei outro Cruise, e ele nos levou de volta ao restaurante. Desta vez, sem problemas. Nós mantivemos as mãos, os braços e os tripés bem longe das janelas.
Uma noite no táxi autônomo Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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