Recentemente, foi divulgado pela imprensa que Pelé não estaria mais respondendo ao tratamento que faz contra um câncer e, por isso, estaria “em cuidados paliativos”. A notícia, logo interpretada como um sinal do fim da vida do craque e motivo para condolências, foi negada pela família.
Mesmo assim, o fato gerou uma onda de comoção e evidenciou a falta de conhecimento generalizada sobre o assunto. Em primeiro lugar, receber cuidados paliativos não é algo ruim. Esse conjunto de medidas visa aliviar o sofrimento e acolher pessoas com doenças graves ou crônicas, curáveis ou não, e seus familiares.
“Significa que a pessoa está recebendo um cuidado digno, que visa controlar sintomas, trazer conforto e considera se os tratamentos estão trazendo mais danos do que benefícios”, resume o médico paliativista Douglas Crispim, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP).
Uma das ideias gerais dos cuidados paliativos é não acelerar nem adiar a morte com intervenções desnecessárias. Mas eles não entram em jogo só quando o fim da vida é discutido. Pelo contrário, os estudos mostram que ajudam doentes a voltarem à rotina, terem mais qualidade de vida e controlarem melhor seus sintomas.
“Inclusive, há pesquisas mostrando que pacientes que recebem essa assistência vivem por mais tempo, porque sofrem menos”, aponta Crispim.
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Porém, graças aos estigmas e à falta de acesso, hoje boa parte das famílias só ouve falar em cuidados paliativos quando o indivíduo já está em fase terminal, daí a associação errônea com a morte ou com uma ideia de que “não há mais o que se fazer”.
Afinal, o que são os cuidados paliativos?
Como adiantamos, o principal objetivo do cuidado paliativo é controlar sintomas de doenças (como dor, incapacidade de movimentação e outros), oferecer suporte psicossocial e amenizar efeitos colaterais de tratamento.
“Não quer dizer que a pessoa está morrendo, mas sim que tem uma doença grave que traz sofrimento”, esclarece a psicóloga e paliativista Silvana Aquino.
Esse sofrimento não é só físico – se estende por várias áreas da vida de uma pessoa diagnosticada com um problema sério de saúde. “Buscamos promover uma camada extra de conforto também às dores emocionais, sociais, financeiras e espirituais num momento em que o indivíduo está fragilizado e necessitando de um olhar completo”, aponta Crispim.
Para isso, entram em cena vários especialistas: além dos próprios médicos paliativistas e outras especialidades necessárias para manejo de sintomas, recorre-se a fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, etc. A equipe cuida do doente e da família.
Não existe um manual de intervenções, pois cada situação demanda ações específicas. Entretanto, há o princípio norteador de valorizar sempre a vida, mas com qualidade. Na prática, significa não realizar tratamentos desproporcionais, que prolonguem a vida, mas tragam sofrimento e limitem a autonomia da pessoa.
Cuidados paliativos não são só para quem está morrendo
Esse é um dos aprendizados em relação à história do Pelé. É errado dizer que “já que a quimioterapia não está funcionando, a pessoa ficará em cuidados paliativos”.
Até existem os cuidados paliativos exclusivos, quando se interrompe tratamentos para focar em oferecer conforto no fim da vida. Mas essa deveria ser a última parte final de uma jornada de cuidado iniciada já no diagnóstico da condição.
“A equipe pode atuar de maneira concomitante à qualquer intervenção que cure ou reduza o avanço de uma doença, controlando sintomas e reabilitando a pessoa em paralelo ao tratamento curativo”, diz Silvana.
Eles podem ser acionados sempre que há uma ameaça à vida, mas que pode ser revertida – um câncer ou um caso grave de Covid, por exemplo – ou evoluirá muito lentamente, por anos e anos, como demências e o Alzheimer.
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Pessoas que tiveram um acidente vascular cerebral ou lidam com doenças que comprometem pulmões, rins, fígado e outros órgãos também se beneficiam desse atendimento especializado.
Longe de ser um preparo para a morte, a estratégia ajuda o paciente a ganhar o máximo de autonomia possível dentro de suas limitações.
“Quem se sente mais ofendido com essa associação são os próprios pacientes, que tratam suas doenças e recebem cuidados paliativos há anos, sem deixar de fazer suas atividades diárias e viverem suas vidas”, comenta Crispim.
Ele e Silvana lamentam, contudo, que essa visão integrada seja raridade no país. “Hoje, o paciente é encaminhado para os cuidados paliativos só quando se entende que sua doença não pode mais ser curada”, expõe a psicóloga.
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Não é sobre morte, mas também é sobre ela
Para embarcar em uma jornada onde o objetivo seja viver bem, e não necessariamente viver mais, é preciso falar sobre o final da vida. Está aí um assunto difícil de encarar de frente, mesmo por profissionais de saúde.
“Nossa cultura considera que salvar a vida é algo matemático, e que a pessoa viver significa manter seus sinais vitais estáveis a qualquer custo. Mas a vida em si não é só um coração batendo”, diz Crispim.
Por conta disso, aponta o médico, quem adoece passa, hoje, por uma via crucis de muito sofrimento para evitar uma morte que é inevitável (como todas são). “O paliativismo valoriza a vida, mas considera que a morte também faz parte dela”.
Claro, essa mudança de paradigma não é nada fácil. Daí surgem as confusões na hora de falar sobre o tema e o medo ao ouvir a palavra num hospital.
“Isso faz com que a morte no Brasil ocorra longe da família, dentro de unidades de terapia intensiva, com o indivíduo todo conectado a aparelhos e com baixa disponibilidade de medicamentos para dor”, pontua Crispim. Além de doloroso, esse processo custa mais caro para o sistema de saúde.
Situação do Brasil é crítica
Os cuidados paliativos são valorizados nos Estados Unidos e nos países da Europa, mas no restante do mundo o acesso é desigual. Não à toa, a Organização Mundial da Saúde considera a falta de disponibilidade dessa abordagem uma emergência de saúde pública.
“Não deveríamos estar discutindo esse assunto assim, quando há uma polêmica envolvendo uma celebridade. A grande questão a ser levantada é: por que, quando adoece, a maioria dos brasileiros morre com dor e longe de seus familiares?”, questiona Crispim.
O país é o único país da América Latina onde o paliativismo não é uma especialidade médica formalmente reconhecida (é considerada uma subespecialidade). E estamos regredindo.
Em 2015, o Brasil ocupava a 42ª posição num ranking de 80 países sobre qualidade da morte. Em 2021, em um novo ranking com 81 nações, caímos para a 79ª, ou seja, o terceiro pior lugar do mundo em assistência a pessoas no fim da vida.
“Temos cerca de 200 serviços de cuidados paliativos, o que é muito pouco, e, em sua maioria, concentrados no Sul e no Sudeste”, lamenta Silvana.
O que de fato são cuidados paliativos e as lições do caso Pelé Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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