sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Enfermeira com atuação no SUS e em terapia comunitária ganha prêmio global

Jussara Otaviano se define como uma “enfermeira raiz”. Mas raiz mesmo! Digamos que a enfermagem está até no seu DNA − a mãe sonhava em seguir a profissão, que foi abraçada pelas irmãs e outras mulheres da família.

E essa mineira de Guaxupé, que mora há anos em São Paulo e participou do nascimento do SUS, não só honrou a tradição em casa como entra para a história como a vencedora do 2º Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia no Brasil.

Jussara foi a escolhida pelo júri da premiação por um trabalho que busca expandir o uso da terapia comunitária integrativa, caracterizada por rodas de conversa que ajudam os participantes a lidar com o sofrimento emocional, por meio da formação de novos terapeutas. Trata-se de um método criado no país e já incorporado à rede pública capaz de dar acolhimento a brasileiros que, muitas vezes, não teriam acesso a um cuidado individualizado em saúde mental.

“Os 27 anos da Jussara dedicados à enfermagem, aliados à sua paixão pela educação, dão a ela uma capacidade sem precedentes de motivar, engajar e treinar pessoas para a terapia comunitária. Ela é um poço de insights e boas práticas, e está dando a seus pares ferramentas para alcançar e aliviar os desafios psicológicos de populações mais velhas e vulneráveis. É um exemplo de como enfermeiros podem ser líderes, modelos e figuras centrais na sociedade”, diz Sophie Lu-Axelsson, CEO da Swedish Care International, fundação sueca responsável pela premiação, que já acontece em sete países.

“O projeto da Jussara nos mostra a terapia comunitária integrativa de forma inovadora, facilitando a participação dos pacientes da comunidade, capacitando mais profissionais a conduzi-la e podendo ampliar seu uso a idosos e pessoas com demência. É um trabalho multidisciplinar que promove resultados mais efetivos no cuidado e uma troca valiosa”, comenta Luciana Hataiama, líder do júri e head de enfermagem da Vibe Saúde, healthtech que é a parceira oficial e organizadora do prêmio no Brasil. 

Jussara Otaviano no dia de apresentação dos trabalhos das finalistas da premiação, na sede da Vibe Saúde.Foto: Vibe Saúde/Divulgação

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A trajetória

Nascida em Guaxupé, Jussara Otaviano seguiu os passos das outras irmãs que, apoiadas pela mais velha, vieram estudar e fazer a vida na capital paulista. “A enfermagem é uma tradição na nossa família. Quando chegávamos a São Paulo, a primeira coisa que fazíamos era um curso de auxiliar de enfermagem. Acabei o curso antes de completar 18 anos e, quando comecei a trabalhar na área, dei início também à faculdade de enfermagem”, conta a vencedora do prêmio instituído pela Rainha Silvia da Suécia.

A história de Jussara com a assistência em saúde deu seus primeiros passos ainda em casa, quando já ajudava a cuidar do pai, que sofria de um diabetes severo. Mas foi entre plantões no hospital e aulas na faculdade que ela mergulhou nesse mundo. “Cheguei a ter uma overdose de pronto-socorro e internação hospitalar”, brinca.

Em paralelo, a mineira seguiu outra tradição familiar, a música, compondo e cantando em um quarteto formado com as irmãs. “Houve um momento em que foi difícil escolher qual caminho trilhar, mas depois percebi que era possível conciliar as duas coisas”, relata. Sorte da enfermagem − e do grupo A Quatro Vozes, que continua em atividade.

Mas a enfermeira não queria ficar confinada às paredes do hospital. Sentiu que podia fazer a diferença lá fora. E foi assim que partiu para uma pós-graduação na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e entrou no território da educação em saúde. Numa coincidência positiva, Jussara teve a oportunidade de acompanhar de perto a gestação do Sistema Único de Saúde (SUS) na capital paulista no início dos anos 1990.

“Pela Associação Congregação de Santa Catarina, fui conhecer e atuar na periferia da cidade, no Jardim Ângela, onde, num cenário de insegurança pública, comecei a trabalhar com lideranças comunitárias e a implantar o que depois ficou conhecido como estratégia de saúde da família”, relata.

Passo a passo, a enfermeira participou da inauguração da primeira Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro, passando a atuar na gestão da atenção primária e dos serviços até virar responsável técnica pelo posto.

Com essa experiência, foi convidada a implantar e gerir novas UBS em outros pontos da Zona Sul de São Paulo. E, ansiosa por conhecimento, decidiu fazer um mestrado em educação em saúde.

Daí foi um pulo até chegar à Sociedade Beneficente Israelita Albert Einstein para implementar serviços à população desassistida dessa região do município, e foi nesse capítulo da sua vida que ela somou esforços à instalação do Hospital do M’Boi Mirim, que atende o SUS e é mantido pelo Einstein.

Durante essa jornada, tomou conhecimento da terapia comunitária integrativa, pela qual se apaixonou, no momento em que o método passava a ser adotado na cidade. E partiu para uma temporada na Bahia para realizar uma especialização na Fiocruz em ativação de processos de mudanças. “Foi lá que aprendi que, se a gente faz parte do problema, também faz parte da solução”, afirma.

Alinhando educação e saúde, Jussara depois passou a coordenar treinamentos, inclusive a distância, para profissionais da área conhecerem e se aperfeiçoarem no campo da saúde da família, uma das bases do atendimento do SUS.

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A terapia comunitária

Rodas de conversa de uma hora que permitem dar vazão a sentimentos, trocar experiências, acolher e ser acolhido. Assim funciona a terapia comunitária integrativa (TCI), que viria a ganhar protagonismo na carreira de Jussara. Inspirada por uma das irmãs mais velhas, ela se formou em TCI e fez uma imersão no Ceará com o médico criador da metodologia, o psiquiatra Adalberto Barreto.

Tomou tanto gosto pela coisa que, desde 2009, pelo Instituto Afinando Vidas, a enfermeira atua formando outros profissionais em TCI. “A terapia tem a proposta de ajudar a tirar pessoas do estado de sofrimento, porque, embora a doença seja algo a ser encaminhado e tratado por um profissional especializado, qualquer um pode acolher o sofrimento do outro”, esclarece Jussara.

Hoje a TCI faz parte da cesta básica do SUS e já chegou a 56 países. A vencedora da premiação internacional explica como funciona.

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“São rodas de conversa com uma hora de duração. Começa com um acolhimento, quando podemos cantar uma música, por exemplo, e depois as pessoas que estão com alguma necessidade ou sofrimento são convidadas a falar e se colocam, se emocionam… O terapeuta observa o cenário e lança o mote: quem, entre aquelas pessoas, já vivenciou situação parecida e o que fez para resolver. A própria roda traz soluções, criando uma rede que não acaba naquela sessão”, resume.

“A terapia se baseia num pressuposto do professor Adalberto Barreto, que diz que ‘quando a boca fala, o corpo sara'”, diz Jussara. Criada em 1987, a TCI é, na visão da enfermeira, uma ferramenta valiosa na estratégia da saúde da família e na assistência à saúde mental, sobretudo tendo em vista a falta de recursos e especialistas a que boa parte dos brasileiros está sujeita.

“A técnica surgiu justamente com essa noção de que os profissionais da área não conseguiriam atender todo mundo individualmente. Então é uma proposta acessível e sustentável, que pode ser aplicada em UBS, Capes, centros de idosos, escolas…”, conta a enfermeira e terapeuta. “As rodas representam um tratamento complementar, e, quando notamos nas sessões que alguém precisa de um acompanhamento especializado com psicólogo ou psiquiatra, podemos fazer esse encaminhamento.”

Entusiasta do modelo, a enfermeira de origem mineira hoje atua num polo de formação de TCI em São Paulo e já participou de expedições e cursos de capacitação para terapeutas no sertão brasileiro, na divisa da Bahia com o Piauí, além de ter prestado assistência a vítimas da tragédia de Brumadinho, em Minas.

Convidada pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, Jussara está expandindo a formação de pessoas para realizarem as rodas terapêuticas pela cidade e darem vazão às demandas e aos sofrimentos emocionais de grupos como idosos. “Já houve um aumento de 200% no uso da TCI na rede pública, e tem potencial para mais”, acredita Jussara.

Em tempos de pandemia, inclusive, Jussara participou da elaboração de um protocolo para que a terapia também possa ser feita online. Afinal, não há barreiras físicas para acolher os outros.

A ambição da enfermeira agora é somar evidências científicas sobre os benefícios da estratégia. “Notamos que a TCI promove relaxamento, reduz o estresse e diminui sentimentos como tristeza e raiva, mas queremos realizar estudos clínicos para mensurar seus efeitos”, conta.

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<span class="hidden">–</span>Imagem: Divulgação/Divulgação

A láurea

Pelo trabalho de expansão da terapia comunitária integrativa com foco no SUS, baseado na formação de novos terapeutas e no olhar para extratos desassistidos da sociedade, Jussara Otaviano foi reconhecida na segunda edição do Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia. Ela ganhará uma bolsa em euros e terá a oportunidade de se aperfeiçoar profissionalmente e receber o diploma de vencedora das mãos da monarca sueca.

“Vendo as candidaturas brasileiras à premiação deste ano, pudemos ver o potencial inexplorado e o entusiasmo dessas profissionais para melhorar a qualidade do atendimento aos idosos. Essa é a essência do prêmio”, afirma Sophie, da Swedish Care International.

A enfermeira Luciana Hataiama destaca no projeto de Jussara a ênfase na saúde mental. “Na Vibe, mais de 50% dos atendimentos hoje são voltados a essa demanda. Cientes disso, valorizamos a terapia comunitária integrativa como uma prática que fortalece o momento da escuta, permite ouvir a si mesmo e aos outros e, ao incentivar a troca de experiências, alegrias e tristezas, cria uma rede de apoio muito bonita para o indivíduo e a comunidade”, avalia.

“As pessoas têm o direito de se colocar, de falar e de se emocionar. Muitas delas morrem porque não falam. Dar acesso à fala é uma forma de cuidar e dar a elas saúde”, defende a ganhadora, que, com um pé na música, cita a canção O Que Se Cala, de Elza Soares (com quem já dividiu um palco), para simbolizar sua atuação na área.

1. Jussara Otaviano – Quando a boca fala, o corpo sara: Terapia Comunitária Integrativa nos serviços de saúde de São Paulo e o foco na atenção à saúde do idoso (vencedora) 2. Meiry Okuno – Recreação para pessoas idosas 3. Ana Paula Caetano – Compreendendo o cuidado da pessoa idosa 4. Pamella Lucas – Tempo de pandemia: iniciativa Sabe Covid-19 5. Suelen Santos – Reabilitando a melhor idade 6. Adriana Macedo dos Santos – Projeto Despertar

 

“É muito importante ver a nossa categoria recebendo reconhecimento, não só salarial, e reverenciar o SUS, esse sistema que ajudamos a construir tijolo a tijolo. Tenho orgulho de ser uma enfermeira negra, que representa tantas afrodescendentes e chefes de família que ajudam os outros em seus momentos de maior fragilidade”, declara.

E é no gingado do samba, com um manto que remonta a suas origens africanas sobre o ombro, e o lema do acolhimento pela fala que essa brasileira e enfermeira raiz estará em breve no Palácio Real de Estocolmo para receber oficialmente o Prêmio de Enfermagem Rainha Silvia da Suécia.

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Enfermeira com atuação no SUS e em terapia comunitária ganha prêmio global Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

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