terça-feira, 30 de novembro de 2021

Ômicron: descoberta precoce ajuda na prevenção e adaptação de vacinas

Pouco se sabe ainda sobre a variante Ômicron do coronavírus, identificada há poucos dias, na África do Sul. Cientistas trabalham 24 horas para descobrir o mais importante: se ela pode escapar das vacinas. Enquanto não temos certeza sobre seu real perigo, a imunização e os protocolos de prevenção devem ser mantidos em todo o mundo.

Fazer mais testes e também sequenciamento genético de novos casos estão entre os apelos da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, a vacinação caminha bem e é aliada, mas como não há país com índices de vacinação semelhantes ao nosso, especialistas não conseguem prever como a Ômicron vai se comportar por aqui.

Os dois primeiros casos em nosso país foram relatados pelo Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Trata-se de um casal que veio da África do Sul para o Brasil há onze dias. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), novas análises serão realizadas.

Entenda os detalhes já conhecidos sobre a Ômicron:

Origem e destino: o mundo todo

A Ômicron foi identificada pela primeira vez na África do Sul em 24 de novembro, segundo a OMS. Isso não significa, porém, que o vírus teve origem nesse país. Após a primeira notificação, várias regiões detectaram a variante.

Além de outros países do sul da África, também anunciaram casos: Austrália, Áustria, República Tcheca, Dinamarca, Israel, Suíça, Holanda, Reino Unido, Alemanha, Bélgica, Itália, Japão, França, Espanha, Portugal e Canadá.

A Escócia identificou seis pessoas infectadas e o governo reconhece que a transmissão pode ter sido comunitária (quando não dá para rastrear a origem da infecção, indicando que o vírus já está em circulação entre quem não viajou nem teve contato com quem visitou outros países).

E a Holanda informou, nesta terça, que a nova variante já estava no país antes da confirmação de casos pela África do Sul.

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“O continente africano é vítima duplamente, tanto por causa da falta de vacinas nos países pobres e também pela excelência em pesquisa da África do Sul. Quem procura mais, acha antes”, analisa Evaldo Stanislau, infectologista do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). A África do Sul e o Reino Unido são os maiores sequenciadores de variantes do mundo, segundo a plataforma Gisaid.

Por isso, não faz sentido, no momento, fechar fronteiras apenas aos países de um continente, alertam especialistas. Stanislau afirma que a melhor decisão no Brasil seria a de exigir o passaporte da vacina a todos os visitantes ao invés de bloquear aeroportos aos africanos.

“É importante apoiarmos o apelo da OMS de abertura para os países da África. Inclusive o órgão reconhece que a origem da variante vem de múltiplos países”, comenta a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Precaução no lugar da preocupação

A OMS tomou a decisão de classificar a Ômicron como “variante de preocupação” porque foram identificadas mais de 50 mutações em sua estrutura. Cerca de 26 dessas modificações estão na proteína Spike, parte do vírus que é utilizada como chave de acesso às nossas células.

As vacinas fazem com que os anticorpos consigam identificar e atacar justamente esse trecho do vírus, impedindo seu avanço em nosso organismo. Daí a apreensão em relação à manutenção da eficácia das vacinas que temos hoje. Cabe lembrar que o número dessas mutações era consideravelmente menor na Delta (apenas 10), variante que recentemente atormentou Estados Unidos, vários países da Europa e Israel.

A boa notícia é que, dessa vez, a descoberta ocorreu mais cedo. “Quando a Delta foi identificada, já havia uma explosão de casos na Índia. Por isso, não houve dúvidas sobre sua origem e características. Quanto mais gente infectada, mais dados temos sobre formas de transmissão e do grau de virulência”, explica Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin, nos Estados Unidos.

Stanislau reitera que o que acontece no laboratório nem sempre reflete a vida real. “Os experimentos indicam que a Ômicron é potencialmente mais transmissível e capaz de driblar as vacinas. Mas, uma vez em ação, a variante pode dar respostas diferentes dependendo das características de cada população”, reforça o professor da USP.

No caso do Brasil, onde a população segue sendo vacinada, temos a oportunidade para focar na prevenção. “A imunidade cai conforme o tempo. Podemos não ter a mesma proteção hoje e daqui a 90 dias. Por isso, é importante manter o calendário, vacinar crianças e adolescentes e tomar as doses de reforço. A Delta não pegou por aqui, mas ainda não sabemos como essa variante pode se comportar”, aconselha Stanislau.

Por que a Ômicron surgiu?

Especialistas afirmam que não há dúvidas de que variantes aparecem em locais com menores taxas de imunização. Quando a maior parte de uma população não está vacinada, o vírus tem espaço para circular e encontrar meios de evoluir com o intuito de continuar se espalhando pelo mundo.

Por isso, a OMS tem reiterado mensagens sobre a importância da equidade na distribuição de vacinas. “Não adianta nos questionarmos sobre doses de reforço enquanto os países pobres não receberam nem a primeira injeção”, disse Tedros Adhanom, diretor da entidade, em diversos encontros com a imprensa.

A nova onda de casos na Europa se dá pela baixa adesão às campanhas. Já a África é um continente dividido. Enquanto há países mais pobres, como o Quênia, que só conseguiram imunizar 4,8% da população, o mais rico – a África do Sul – tem doses sobrando, mas poucos braços interessados em recebê-las. O país vacinou cerca de 24%, segundo dados do site Our World in Data.

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Por lá, a população está hesitando em tomar as injeções, tanto que o governo chegou a pedir que a Johnson & Johnson e a Pfizer atrasassem o envio de mais doses para não correr o risco de o estoque vencer, informou a agência de notícias Reuters.

Quais são as variantes de preocupação até o momento?

  • Alfa: a antiga B.1.1.7, identificada no Reino Unido.
  • Beta: a antiga B.1.351, identificada na África do Sul.
  • Gama: a antiga P.1, identificada no Brasil.
  • Delta: antiga B.1.617.2, identificada na Índia.
  • Ômicron: antiga B.1.1.529, foi identificada em múltiplos países

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O que se sabe, até agora, sobre transmissibilidade

Por suas características (especialmente o número de mutações), a Ômicron parece ter grande potencial de transmissibilidade, mas não há confirmação oficial disso.

“Especula-se essa possibilidade por causa de semelhanças já observadas com outras mutações que foram bastante contagiosas”, explica Denise, do Instituto Sabin.

Quais são os sintomas provocados pela Ômicron?

A primeira médica a receber pacientes com sintomas da nova variante, Angelique Coetzee, da África do Sul, informou à imprensa que observou cansaço excessivo, febre alta e batimentos cardíacos mais acelerados entre os acometidos.

Mas, segundo a OMS, ainda não há comprovação de que os sintomas se diferem dos causados por outras variantes nem é possível dar como certo que a Ômicron não vá provocar casos graves.

Dados preliminares sugerem que há “taxas crescentes de hospitalização na África do Sul, mas que isso pode ser devido ao aumento do número geral de pessoas que estão se infectando”, informou a entidade em comunicado recente.

Os infectados foram, em sua maioria, jovens universitários que têm uma probabilidade maior de reagir melhor à infecção. Pessoas mais vulneráveis, como idosos e indivíduos com comorbidades, podem não responder da mesma maneira. “Nós só teremos esse tipo de informação quando houver um número maior de infectados”, reforça Denise.

“Embora tenhamos essas notícias de que os sintomas dos primeiros pacientes foram leves, é válido ter em mente que quando um vírus é altamente transmissível, ele chega a mais pessoas. Consequentemente, sobe o risco de provocar casos graves”, alerta Ethel.

Primeira imagem da variante Ômicron revela mais que o dobro de mutações que a Delta.Foto: Cortesia Hospital Bambino Gesù de Roma/Divulgação

Vacinas seguem eficazes contra a Ômicron?

Os principais estudiosos estão debruçados exatamente sobre esse tema. Acredita-se que em até duas semanas saberemos se a Ômicron é resistente a vacinas.

“Se isso ocorrer, as fabricantes dos imunizantes à base de RNA [como a Pfizer] podem adaptar as fórmulas em semanas. Levando em conta a condução de estudos e aprovações oficiais, é possível ter uma vacina atualizada em dois meses”, calcula Denise.

Mesmo assim, é possível que boa parte do mundo ainda se beneficie dos imunizantes disponíveis. “As vacinas nunca vão perder a eficácia completamente, porque elas criam um padrão de defesa no organismo”, afirma o imunologista Gustavo Cabral, expert no desenvolvimento de vacinas e pesquisador da USP.

“Além disso, há outras variantes circulando. Então, é preciso continuar vacinando a população”, completa.

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Quais exames flagram a nova variante?

A tecnologia dos testes PCR e de antígeno ajuda a identificar a nova cepa. “A questão no Brasil é a baixa oferta de testes e o fato de a população e até mesmo os médicos estarem relaxando nos cuidados. É preciso aumentar a vigilância clínica e não ignorar sintomas gripais leves”, crava Stanislau.

O Brasil ainda tem poucas instituições e verba para manter uma boa vigilância genômica (rastreamento de variantes). “Como fazemos poucos testes, o número de amostras enviadas para sequenciamento também é baixo, menos de 1%”, conta Ethel.

O que os países deveriam fazer diante dessa nova ameaça?

Ampliar a vacinação ainda é urgente. Isso impede que a variante se espalhe e que outras novas surjam. A OMS pede ainda que os países aumentem sua capacidade de realizar testes e de sequenciá-los, para que tenhamos uma real noção sobre o aparecimento de mutações.

Recomendações individuais

Embora a gente veja flexibilizações no Brasil no inteiro, não é hora de relaxar. Precisamos caprichar nos cuidados, até para que a situação não volte a se agravar. Usar máscara, higienizar bem as mãos, evitar aglomerações, manter locais de trabalho e diversão arejados e praticar o distanciamento social, dentro do possível, são medidas bem-vindas.

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Nossa batalha contra a AME e o sonho de um sistema de saúde melhor

Somos de Ananindeua, uma cidade na região metropolitana de Belém do Pará. Nossa filha, Laura, foi diagnosticada com atrofia muscular espinhal (AME) tipo 1 aos seis meses de vida. Mas nossa luta não começou aí. Antes do diagnóstico, o acompanhamento no posto de saúde já andava bem complicado, agravado pelo precário sistema de saúde e pela Covid-19 e o lockdown.

Motivos não faltavam para o posto cancelar consultas e adiar atendimentos. Na maioria das vezes, eles levavam mais de 60 dias para serem agendados. Não tínhamos, assim, um acompanhamento mensal, não podendo acompanhar da maneira mais adequada os marcos do desenvolvimento da minha filha.

Mas algo começou a chamar a minha atenção. Era o fato de a Laura apresentar muitas secreções aos 2 meses de vida. Procuramos um hospital público de Belém, mas o pediatra se recusava a atender crianças que não apresentavam febre ou vômitos, porque as equipes de saúde estavam mobilizadas para casos de urgência e emergência.

A conduta ficou a cargo do serviço de triagem e uma enfermeira nos prescreveu apenas uma lavagem nasal (o que só aliviava, mas nunca resolvia o problema).

Os médicos que atenderam a Laura sempre diziam que aquele quadro era normal, o desenvolvimento variava de criança para criança. Outros sintomas foram aparecendo, porém. Laura tinha resistência para se alimentar, muita prisão de ventre e continuava acumulando secreções.

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Com a precariedade da rede pública, resolvemos fazer um plano de saúde para que ela tivesse acesso a consultas mensais e pudéssemos avaliar mais de perto seu desenvolvimento. Jamais imaginei que ela estivesse com sinais de AME, até porque nunca tinha ouvido falar da doença. Os médicos continuavam dizendo que aquilo era normal, mas meu coração de mãe não se tranquilizava.

Até que um dia a Laura amanheceu imóvel do pescoço para baixo. Levamos minha filha ao hospital e, na primeira internação, ela ficou duas semanas ali. Nesse período, foi perdendo toda a força muscular e, após muitos exames invasivos e dolorosos, a neuropediatra suspeitou daquela doença. Fomos buscar informações a respeito e deparamos com dados que aterrorizam quaisquer pais.

Nem tivemos tempo para viver a dor do diagnóstico. Corremos para estudar sobre a AME e entender as chances de vida e o bem-estar que poderíamos proporcionar a Laura. Em agosto de 2021, descobrimos que ela tinha AME tipo 1, e, em três semanas, precisamos reinterná-la. Minha filha ficou quase dois meses no hospital e, devido às dificuldades para engolir o leite e ele parar no pulmão, foi submetida a uma gastrostomia.

Hoje, o tempo é o maior inimigo dela. Se existe a boa notícia de que há um medicamento para a doença, existem também os entraves para ter acesso a um remédio que custa milhões e não é fornecido pelo SUS (o Zolgensma). Só essa terapia gênica pode dar a Laura os recursos capazes de evitar a morte dos seus neurônios motores, fazendo com que ela perca todos os movimentos.

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Hoje o SUS fornece um medicamento que ajuda a reduzir a perda de células nervosas e a melhorar a força e o tônus muscular. No entanto, esse é um tratamento que apenas retarda os efeitos da doença.

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Com muito sacrifício, pudemos pagar um plano de saúde particular, custeado pela minha mãe, mas conseguimos essa medicação na rede pública. Laura fará sua terceira dose até completar quatro sessões em um mês; depois, será uma dose a cada quatro meses.

Para as famílias que têm uma criança com AME, a realidade é difícil. O pequeno precisa de muitos cuidados e equipamentos especiais (respiradores, monitores de oxigênio e pressão, sondas para nutrição etc). Se já é difícil ver seu filho se alimentando por sonda gástrica diariamente, imagine ter de encarar, ao mesmo tempo, uma luta por seus direitos.

A pequena Laura com o suporte do respirador.Foto: Acervo pessoal/Divulgação

A batalha envolve convênios, que frequentemente dificultam o atendimento às demandas – no nosso caso, só conseguimos liberação para o home care da Laura após entrar na Justiça. E envolve melhorias no sistema público. Diante da AME, precisamos pensar e agir para ter acesso ao medicamento baseado em terapia gênica. Somente ele poderá dar a crianças como a Laura a qualidade de vida que ela e outras merecem, podendo se alimentar e respirar sem aparelhos.

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Para conseguir esse medicamento, que está fora da nossa realidade financeira, lançamos nas redes sociais uma vaquinha virtual com a campanha @amelaurinha e aproveitamos cada segundo para sensibilizar as pessoas e arrecadar o valor milionário da medicação.

Também lutamos para sensibilizar a Justiça a fim de que a União pague pelo menos parte desse valor. Muita gente tem aderido a essa causa, mas é preciso mais, muito mais.

Acredito que o Estado e a União precisam dar maior atenção às pessoas que convivem com a AME e outras doenças raras. Não é porque o problema atinge uma criança a cada 10 mil nascimentos que deve ser deixado de lado. Em todo o Norte e o Nordeste, até agora apenas uma pessoa conseguiu receber aquele medicamento, um menino de 2 anos também de Ananindeua.

A doença já fez a Laura perder toda a força muscular do pescoço para baixo. Ela não movimenta as pernas e a dificuldade para respirar é constante. É tanta força para respirar que ela chega a transpirar, daí a necessidade do suporte mecânico de ventilação.

Fora isso, minha filha precisa ficar direto no ar condicionado. Até a conta de energia virou um problema, pois não posso exercer minha profissão e tive de abandonar os estudos para concurso público. Cuido dela 24 horas por dia, e o pai se divide entre o apoio, o trabalho e as burocracias do tratamento.

Ao mesmo tempo que o passar dos dias nos aflige, tenho esperança. E deixo meu abraço a todas as famílias que, como nós, têm o desafio de lutar pelo direito à vida dos seus filhos.

* Dayanne Leal Souza é bibliotecária e mãe da Laura. Junto ao marido Everton Costa Silva, a família luta unida pela qualidade de vida da filha com AME

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Índice glicêmico: na montanha-russa do açúcar

Há temas, no universo da nutrição, que parecem seguir o movimento de um carrossel. Eles vão e vêm de tempos em tempos, ainda mais se o assunto girar em torno de peso, dieta e ingredientes como o açúcar. Com o índice glicêmico, o IG, tem sido assim.

Entre idas e vindas, críticas e defesas, essa medida da velocidade com que o corpo transforma em glicose um alimento já esteve atrelada a regimes da moda, mas não perdeu seu alicerce científico.

O conceito, para continuarmos nas metáforas do parque de diversões, remete a uma montanha-russa, com as subidas e descidas dos níveis de açúcar no sangue. Afinal, o IG é uma classificação criada para mensurar o efeito de itens ricos em carboidratos (de frutas a doces) na glicemia.

Tem tudo a ver com o ritmo de entrada das moléculas de glicose geradas pela digestão nas nossas células. Se isso for ligeiro, o IG é alto. É vagaroso? O número é baixo. De modo geral, produtos refinados, feitos de farinha branca, caem no primeiro grupo. No segundo, entram os itens integrais, redutos de fibras.

No cenário ideal, o fornecimento de glicose para as células deve ser gradual. Isso ajuda a modular a liberação de hormônios, como a insulina, e os sinais cerebrais da saciedade. Se esse processo ocorre em alta velocidade, o tempo todo, o corpo tende a pegar um atalho para a obesidade e o diabetes.

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Colocando desse jeito, parece fácil e, por que não, uma fórmula mágica para emagrecer. “Mas não se trata de algo tão simples, já que muitas variáveis precisam ser consideradas no cálculo do IG”, pondera a nutricionista Eliana Bistriche Giuntini, do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC) da Universidade de São Paulo (USP).

A estudiosa integra a equipe responsável pela Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TBCA), que traz, entre outras informações, dados do impacto glicêmico de comes e bebes. Segundo ela, interpretações erradas ou descontextualizadas do IG podem levar a escolhas inapropriadas.

Doce glossário

Entenda o significado dos termos que protagonizam esta reportagem

  • Glicose – Fundamental para todas as células, essa molécula simples de açúcar é combustível para o corpo funcionar.
  • Carboidrato – É o nutriente que fornece glicose de modo mais imediato. Frutas, cereais e massas são fontes.
  • Glicemia – Designação para a quantidade de glicose na corrente sanguínea após a transformação da comida pela digestão.
  • Índice glicêmico – Classificação para alimentos ricos em carboidrato de acordo com seu efeito nas taxas de glicemia.
  • Carga glicêmica – É um cálculo que combina o índice glicêmico do alimento com a quantidade consumida na refeição.

Vejamos: frutas como a melancia costumam despontar na parte superior dos gráficos de índice glicêmico, sendo frequentemente injustiçadas com a pecha de poços de açúcar. “Mas não dá para tachar determinados alimentos e excluí-los definitivamente do cardápio”, defende a nutricionista Maristela Strufaldi, da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD).

A palavra-chave aqui é contexto, e, dentro dele, Maristela sublinha que precisamos levar em conta a chamada carga glicêmica, uma medida que combina o IG à quantidade de carboidrato consumida. Resumindo: além da velocidade, a carga também pesa.

Outras questões influem na medida do IG: modo de preparo, formulação pela indústria e até o clima e o terreno onde o alimento foi cultivado. E todos esses fatores são acatados numa revisão recém-publicada no periódico The American Journal of Clinical Nutrition, que lista e atualiza mais de 4 mil itens, entre naturais e processados, com base no índice glicêmico.

“A nova tabela poderá auxiliar nas pesquisas sobre o elo entre a resposta metabólica aos alimentos e o risco de desenvolver doenças como diabetes tipo 2, males cardiovasculares e tumores como os de mama”, diz Jennie Brand-Miller, Ph.D. em nutrição e coautora do trabalho.

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Lá se vão 40 anos desde que cientistas canadenses se lançaram a medir a velocidade de conversão dos alimentos em glicose e a difundir o IG. No centro das atenções, sempre estiveram as fontes de carboidrato. São elas que se transformam mais rapidamente em açúcar dentro do organismo.

“O carboidrato leva de 15 minutos a duas horas para ser absorvido, enquanto a proteína varia de três a quatro horas e a gordura pode chegar a cinco horas”, compara a nutricionista Natalia Barros, mestre em ciências pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Repare aí que alguns carboidratos demoram mais e outros menos para desintegrar e virar energia. “Sobre essa disparidade, diversos fatores interferem, como a estrutura molecular do alimento”, esclarece a nutricionista Ticiane Bovi, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

E lá vamos nós revisitar alguns conceitos das aulas de química. O carboidrato do tipo simples reúne um menor número de moléculas de glicose — a sacarose do açúcar branco é um exemplo. Essa turma chega mais depressa às células, tendo, assim, IG elevado.

Já nos carboidratos complexos, conhecidos tecnicamente como polissacarídeos, a quantidade é maior. Daí que eles precisam ser quebrados diversas vezes para entregar glicose às células. O processo tende a ser mais lento — e o IG, mais baixo.

Um ícone entre os carboidratos complexos são os cereais integrais, que estão bem na fita pelo seu teor de fibras. Elas desaceleram o processo digestivo e atenuam o impacto glicêmico.

Essa é uma das justificativas de por que dez em cada dez especialistas aconselham a inclusão de fontes de fibras na dieta — ou seja, comer mais grãos, frutas e hortaliças (com casca, talo e bagaço, se possível). Os alimentos fibrosos ajudam a pisar no freio da glicemia e de uma cascata de reações metabólicas. Do contrário…

“Quanto mais rápida a absorção, maior será a liberação de insulina pelo pâncreas, numa tentativa de equilibrar os níveis de açúcar no sangue”, explica a médica Maria Fernanda Barca, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem).

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Acontece que, quando esse fenômeno se repete de modo corriqueiro e exaustivo, o pâncreas fica sobrecarregado e vai entregando os pontos — via quase certa para o diabetes — e o corpo passa a acumular a energia desperdiçada na forma de gordura. Não é por menos que estudos associam menus em que predominam itens de baixo IG a um menor risco de obesidade e diabetes tipo 2.

Tal conexão fez e ainda faz muita gente banir batata, polenta, biscoitos, pão francês, arroz branco e até algumas frutas. Mas aí mora o engano. “Não se faz refeição com um só tipo de alimento. É a combinação de vários ingredientes que dá sinergia”, afirma a nutricionista Maria Cecília Corsi, à frente do Cecília Corsi Food Coach, na capital paulista.

Embora tenham se passado décadas das experiências canadenses que resultaram no IG, cálculos e atitudes equivocadas permanecem. Daí a relevância de revisões e novas tabelas capazes de desanuviar os pontos emaranhados.

Essa (re)classificação requer enorme esforço e demanda tempo, recursos e pessoal treinado. A nutricionista Eliana Giuntini resume a ópera para VEJA SAÚDE. Primeiro, a comida passa por análises laboratoriais que destrincham a quantidade e o tipo de amidos e açúcares presentes.

Num segundo momento, pelo menos dez voluntários saudáveis ingerem glicose como padrão de referência. Depois, para o ensaio clínico, são convidados a consumir 25 gramas do carboidrato disponível do alimento examinado. Então, a glicemia deles é medida em jejum e depois de 15, 30, 45, 60, 90 e 120 minutos da ingestão. A partir dessas medições, são realizadas as contas que rendem o IG. Imagine agora repetir esse procedimento em milhares de itens.

A rota da glicose pelo organismo

Como um alimento se transforma em glicose e leva energia para as células

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  • Na boca
    A primeira parte da digestão acontece quando a comida é triturada pelos dentes, amassada pela língua e uma enzima da saliva também entra em ação.
  • Na barriga
    O alimento é desconstruído do estômago em diante e absorvido no intestino. Fibras desaceleram o processo. Carboidratos simples têm o efeito oposto.
  • Na corrente sanguínea
    Assim que ultrapassa o intestino, a glicose cai na circulação. Daí o pâncreas ordena a produção de insulina, hormônio que libera a entrada do açúcar nas células.
  • Na célula
    A insulina é como uma chave que abre a fechadura da célula para a glicose. Lá dentro, o açúcar participa de reações que resultam no ATP, o combustível celular.
  • No corpo
    Se ocorrer alguma falha no percurso, por excesso de carboidratos ou doenças já instaladas, sobra glicose nas artérias, e isso leva a danos ali.

Só que não dá para jogar tudo nas costas da comida. Embora o IG ajude a navegar, precisamos considerar o estado do navio, sobretudo se a ideia é mudar a alimentação diante de doenças crônicas. O navio, no caso, é o nosso corpo.

De acordo com Ticiane, questões como idade, percentual de massa muscular, oscilações hormonais e prática de exercícios influenciam a resposta glicêmica no organismo. As condições do aparelho digestivo também. Assim como a presença de distúrbios (e seus respectivos tratamentos) que repercutem diretamente nas taxas de açúcar no sangue, caso do diabetes.

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Diante disso, o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, da USP de Ribeirão Preto, enfatiza que as condutas, inclusive dietéticas, precisam ser individualizadas. “Há pacientes com diabetes que apresentam um quadro chamado neuropatia gastrointestinal, que altera a velocidade de absorção da glicose”, exemplifica o médico.

Quando as particularidades são consideradas, o IG se torna uma bússola mais confiável. “Todo o contexto interfere na capacidade e no tempo de metabolização [a digestão e o processamento] dos nutrientes”, salienta a nutricionista Renata Juliana da Silva, coordenadora do Curso Técnico em Nutrição e Dietética Integrado ao Ensino Médio — Etec Uirapuru, em São Paulo.

Ninguém tampouco precisa decorar uma tabela de IG ou levá-la sempre à mesa. Dá para aprender os conceitos gerais e fazer ajustes de um jeito mais saboroso. Afinal, o preparo da refeição pode alterar o índice glicêmico. Um dos principais segredos, já revelado, é incrementar os pratos com fibras.

“Ingredientes como a chia e o psyllium vão bem nas mais diversas receitas, até mesmo em sucos”, recomenda Maria Cecília. Farelos de aveia enriquecem saladas e bolos. Brócolis e vagens levantam o moral do arroz.

Outra tática é caprichar nas combinações, ou seja, casar os carboidratos com boas fontes de proteína e gordura (queijos, pescados, carnes magras, castanhas, azeite etc.) — elas equilibram o processo de digestão e o aporte de nutrientes.

O endocrinologista Airton Golbert, professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre e ex-presidente da Sbem, só avisa para não errar a mão nas doses. “É importante acertar nas escolhas, mas sem acarretar um excesso de calorias”, justifica.

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Maristela Strufaldi pede que se monitore o tempo ao fogo. “Cozinhar demais abranda as fibras, modifica as moléculas de carboidrato e torna a absorção pelo organismo mais veloz”, ensina. Sem contar as perdas ao paladar: tudo fica mais molenga e com aquela textura pouco apetitosa.

Procurar manter a integridade dos alimentos, por sinal, é uma dica para jamais esquecer. Veja o caso do feijão. Preso dentro do grão, pela casca, seu amido fica encapsulado e sofre menos ação enzimática durante a digestão. Mas, quando é batido no liquidificador para virar sopa, o conteúdo fibroso cai e a disponibilidade do carboidrato aumenta. Não se trata de abdicar do caldinho, mas, se optar por ele, lembrar-se de recrutar aliados em matéria de IG, caso de couve, queijo e ovo de codorna.

E tem que ficar esperto com as pegadinhas do índice glicêmico. A nutricionista Tarcila Campos, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, dá o exemplo da batata. “A frita tem o IG mais baixo do que a cozida”, observa. Devido ao óleo da receita, a digestão demora um tanto, daí a pontuação mais baixa na tabela. “É apenas uma amostra de que essa classificação nem sempre é sinônimo de qualidade”, diz.

“Por tantos detalhes, não se deve isolar o conceito, mas somá-lo a outros conhecimentos e ferramentas”, interpreta Maria Cecília. É assim que o IG garante uma viagem mais suave, sem sustos na montanha-russa do açúcar.

Erros e acertos na gangorra glicêmica

Práticas bem-vindas e outras desaconselhadas pelos nutricionistas

[Evite] Comer na mesma refeição só fontes de carboidrato 
Quando o prato junta alimentos como batata cozida e arroz branco, entre outros, a digestão costuma ser muito rápida, com a subida nos níveis de glicose.

[É o ideal] Conjugar carboidratos com fontes de proteínas e boas gorduras
Incluir pescados, queijos e carnes magras, além de castanhas, ajuda a modular a absorção do açúcar e reduz o impacto glicêmico da refeição.

[Evite] Ficar horas e horas de jejum
A privação de energia pode desestabilizar os níveis de glicose e o resultado tende a ser dor de cabeça, cansaço, desânimo, tontura, entre tantas
outras chateações.

[É o ideal] Fazer lanchinhos entre as refeições principais
Auxilia a equilibrar a glicemia ao longo do dia, mas atenção com as combinações. Frutas com cereais, iogurtes com sementes ou pães com queijos magros são opções.

[Evite] Abusar dos sucos
Entornar bebidas doces, sobretudo sem acompanhamentos, dispara a taxa de açúcar no sangue. Com isso, a fome também pode vir ligeira um tempinho depois.

[É o ideal] Privilegiar frutas in natura
Quanto mais íntegro o vegetal, maior a presença de fibras. E elas estão entre os agentes que trabalham para que a glicose caia na circulação mais lentamente.

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Apertem os cintos, o índice glicêmico subiu!

Veja a classificação dos alimentos segundo o índice glicêmico (IG). Considera-se IG baixo quando é menor que 55; médio, entre 56 e 69; e alto, de 70 em diante

CAFÉ DA MANHÃ

  • Iogurte natural 17
  • Pera 24
  • Aveia em flocos 39
  • Morango 40
  • Mamão papaia 43
  • Pão integral 9 grãos 57
  • Banana-nanica 61
  • Biscoito cream cracker 64
  • Pão francês 70

DICA: Que tal incluir sementes (abóbora, girassol, chia) e queijos magros (cottage, minas) no seu café da manhã? Isso realmente ajuda no equilíbrio glicêmico

ALMOÇO

  • Cenoura crua 16
  • Grão-de-bico cozido 24
  • Maçã fuji 25
  • Feijão-carioca cozido 38
  • Abóbora cozida 53
  • Arroz branco cozido 57
  • Mandioquinha cozida 62
  • Pêssego 76

DICA: Priorize itens ricos em fibras no cardápio, já que elas colaboram para modular as taxas de glicose no sangue. Só não se esqueça de beber água ao longo do dia

JANTAR

  • Espaguete integral 35
  • Ervilha cozida 35
  • Mandioca cozida 40
  • Milho verde cozido 55
  • Lichia 57
  • Melão 60
  • Beterraba cozida 64
  • Batata cozida 81

DICA: Combinar fontes de carboidratos com alimentos que ofereçam proteínas e boas gorduras é regra básica para evitar elevações bruscas dos níveis de glicose no sangue

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Anunciaram a cura de um homem com diabetes, mas…

Em 29 de junho de 2021, um homem de 64 anos com diabetes tipo 1 recebeu nos Estados Unidos um implante de células produtoras de insulina que mudaria sua vida.

Convivendo com a doença há longos anos, ele sofria com os altos e baixos da glicose no sangue como se fosse uma montanha-russa. Em alguns dias, tinha crises gravíssimas de hipoglicemia, quando os níveis de açúcar caem tanto que a pessoa pode até perder a consciência, intercaladas com grandes picos de glicose.

O diabetes tipo 1 representa cerca de 5% de todos os casos de diabetes no mundo e é considerado uma doença autoimune. Ou seja, o sistema imunológico ataca as células produtoras de insulina lá no pâncreas como se elas fossem inimigas.

Com isso, o órgão para de fabricar o hormônio que permite à glicose entrar nas células e o indivíduo precisa aplicar insulina várias vezes ao dia para sobreviver, sem contar os cuidados com a alimentação, a atividade física e o acompanhamento médico.

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Mas, como divulgou o The New York Times, esse americano de 64 anos foi recrutado para uma nova e promissora experiência aprovada pela FDA (a Anvisa dos EUA). Os pesquisadores cultivaram, em laboratório, células-tronco embrionárias de outros indivíduos e conseguiram fazer com que elas se transformassem em células produtoras de insulina.

Posteriormente, num procedimento cirúrgico pouco invasivo, essas células são implantadas na veia do fígado e passam a produzir insulina. Por serem células provenientes de outras pessoas, o paciente precisa usar remédios contra rejeição para evitar que o seu próprio sistema imunológico ataque também essas novas unidades produtoras de insulina instaladas no fígado.

O objetivo do estudo, conduzido pela farmacêutica americana Vertex com uma equipe da Universidade Harvard, é mostrar a segurança do implante de células produtoras de insulina derivadas de células-tronco associadas ao esquema de medicamentos imunossupressores (que evitam a rejeição) num tempo de cinco anos.

Porém, após três meses do implante, foi noticiado na imprensa americana e replicado em diversos países que o paciente parecia estar curado. Nesse período, o sujeito não teve nenhum efeito colateral sério e os altos e baixos da glicose melhoraram muito.

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Estou aqui de dedos cruzados aguardando o desenrolar dessa pesquisa no longo prazo e esperando os efeitos nos demais 16 pacientes a serem incluídos no experimento. Torço por essa estratégia, assim como torço pela cura.

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No entanto, há ponderações importantes a se fazer. Primeiro, os resultados preliminares não foram publicados ainda em nenhum periódico científico revisado por pares. Segundo, como mencionei ali atrás, o objetivo da pesquisa é averiguar o impacto do tratamento em um prazo de cinco anos. Em três meses é difícil cravar qualquer coisa.

Em busca da cura

Claro que todos nós queremos e procuramos a cura do diabetes. Eu tenho a honra de participar de um time brasileiro pioneiro mundialmente na criação de um tratamento experimental com células-tronco para pessoas com diabetes tipo 1, num modelo diferente do americano. Essa linha de pesquisa na USP de Ribeirão Preto tem 18 anos.

Temos pacientes com diabetes tipo 1 que ficaram mais de uma década livres de insulina. Levando um estilo de vida saudável, eles exibiam glicemias praticamente normais. Podemos chamar isso de cura? Infelizmente, não!

Teve gente na imprensa brasileira e internacional que noticiou nossos resultados como cura. Mas, repito, infelizmente não é. Essa é uma palavra muito forte. Significa acabar de vez com aquela doença. No diabetes tipo 1, isso é ainda mais complexo porque, até hoje, não se sabe a causa exata do problema.

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Voltando ao experimento da Vertex e de Harvard, um dos pesquisadores envolvidos é Douglas Melton, que possui dois filhos com diabetes tipo 1. Tive a honra de dividir um simpósio com ele durante o Congresso Americano de Diabetes de 2015, em Boston, quando o biólogo mostrou que conseguira converter uma célula-tronco embrionária em células produtoras de insulina.

Mas o ponto crucial do diabetes tipo 1 é a autoimunidade. De nada adianta infundirmos células produtoras de insulina sem bloquear a agressão do sistema imunológico. Por isso o grupo americano teve de recorrer aos medicamentos imunossupressores.

E engana-se quem pensa que essa é a grande história da equipe de Melton a ser noticiada. Essa turma de Harvard pretende lançar nos próximos anos um implante de células produtoras de insulina envoltos numa cápsula que impede o ataque da imunidade. Desse jeito, em tese não seria preciso tomar remédios imunossupressores pelo resto da vida. Ficaríamos mais próximos da cura.

Neste momento, encaro as manchetes sobre os achados do estudo americano como um tanto exageradas. Os cientistas estão incluindo no experimento voluntários com idade entre 18 e 65 anos de idade que tenham diabetes tipo 1 com mais de cinco anos de duração, grande variação nos níveis de glicose e pelo menos dois episódios graves de hipoglicemia no último ano.

Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos e acompanhar os desfechos desse trabalho. Sim, acredito na cura do diabetes no futuro. Mas, enquanto ela não chega, sigamos nos informando e nos cuidando.

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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Risco de surto: sarampo é altamente transmissível e não tem tratamento

Um alerta global foi divulgado recentemente pela Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o risco de um surto de sarampo. Um dos motivos é que a pandemia do coronavírus dificultou a vacinação de crianças menores. Segundo a entidade, no ano passado mais de 22 milhões dos pequenos perderam a primeira dose da vacina três milhões a mais que em 2019.

A OMS detectou surtos locais e entende que provavelmente ocorreram mais mortes por causa da doença do que se sabe, já que os diagnósticos podem ter sido prejudicados pelos quadros de Covid-19.

Vale lembrar que o Brasil já vinha apresentando casos de sarampo antes do período de isolamento devido à pandemia. A doença gera muita preocupação porque é altamente transmissível e não tem tratamento.

Em 2016, o quadro chegou a ser erradicado por aqui – ganhamos até um certificado da OMS por esse feito. Mas a comemoração durou pouco. Em dois anos, o sarampo voltou.

Até março deste ano, o Brasil já tinha quase 10 mil casos, sendo que a doença pegou pessoas de diferentes faixas etárias. Em 2020, foram registrados dez óbitos, segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde.

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“Todos os alertas e relatos de surtos servem para chamar a atenção da população”, avalia Lessandra Michelin, infectologista e gerente médica de vacinas da farmacêutica GSK. “Neste ano, o número de casos já está preocupante, e temos uma população suscetível de crianças que nasceram durante a pandemia e de adolescentes que foram negligenciados”, completa a médica.

A meta de vacinação contra o sarampo é de 95% no Brasil, contudo, ela não é atingida desde 2016. Inclusive, só vem caindo. Em 2020, a cobertura vacinal chegou a apenas 70% na primeira dose e 55% na segunda.

“O movimento antivacina somado ao fato de que as pessoas tendem a parar de se importar com doenças com as quais não convivem mais, colaboraram para esse tipo de situação”, interpreta a médica. Mas é preciso entender: sem vacinação em massa, um vírus volta a ganhar força.

A transmissão

O sarampo é uma doença viral altamente transmissível. “O contágio ocorre entre pessoas por meio de grandes gotículas respiratórias e por aerossol [partículas menores] em locais fechados. Um indivíduo pode ser infectado duas horas depois que alguém doente deixou a área”, descreve a médica Tânia Vergara, presidente da Sociedade de Infectologia do Rio de Janeiro.

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Para ter ideia, um único sujeito com sarampo é capaz de infectar de 15 a 18 pessoas.

A especialista conta que não há episódios de pacientes assintomáticos, como ocorre com a Covid-19, e o vírus do sarampo pode ser transmitido quatro dias antes ou depois de surgirem os primeiros sintomas.

As manifestações mais comuns são erupções na pele, febre acompanhada de tosse, irritação nos olhos, nariz escorrendo ou entupido e mal-estar intenso.

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Complicações e tratamento

Aproximadamente 30% dos casos podem apresentar uma ou mais complicações, como diarreia, otite média, pneumonia, encefalite (inflamação no cérebro), panencefalite esclerosante subaguda (que atinge o sistema nervoso). Esses problemas são mais comuns entre crianças menores de cinco anos e adultos. Além de a doença aumentar o risco de morte, pode deixar sequelas graves.

O sarampo em si não conta com um tratamento específico. Medicamentos são indicados com o intuito de amenizar o desconforto decorrente dos sintomas e algumas das complicações.

Vacinação de adultos e crianças

Todas as crianças devem tomar a primeira dose da tríplice viral (vacina que protege contra sarampo, caxumba e rubéola) com 12 meses, enquanto a segunda dose ocorre entre os 15 e 24 meses de idade.

A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim) recomenda que crianças mais velhas, adolescentes e adultos que nunca foram vacinados recebam as duas doses. Quem não lembra se tomou deve tomar as duas injeções com um intervalo de um a dois meses.

O Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza a imunização a adultos com até 29 anos (duas doses, com intervalo mínimo de 30 dias) e para quem tem entre 30 e 59 anos – neste caso, apenas uma dose.

Em relação aos idosos, é um pouco mais complicado. Entende-se que quem nasceu antes de 1960 não precisa se vacinar. De qualquer forma, a recomendação é que os mais velhos sempre busquem um especialista para avaliar a necessidade da imunização.

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O novo cerco à dengue

Ela é um dos tormentos da saúde pública brasileira, se agravou na última década e, apesar de ter aparecido muito menos no noticiário por causa do coronavírus, continuou aprontando pelo país. Segundo o Ministério da Saúde, os dois anos com mais casos de dengue registrados por aqui foram, respectivamente, 2015 e 2019, com mais de 1,5 milhão de episódios estimados cada um.

Mesmo sendo alvo de campanhas de conscientização todo verão, ainda que a doença dê as caras nos 12 meses, o combate ao Aedes aegypti, mosquito que transmite o vírus entre nós, sofreu um duro baque na pandemia.

Com os esforços destinados à Covid-19, o antigo inimigo ficou em segundo plano, seguiu fazendo vítimas e, agora, com a vacinação freando o coronavírus e as pessoas ensaiando um retorno à normalidade, especialistas temem que a dengue volte com tudo em 2022.

“Os picos epidêmicos acontecem de três a cinco anos, então era esperada uma redução em 2020 e 2021. Só que houve subnotificação dos casos devido à atenção dos médicos estar direcionada à Covid-19”, nota a infectologista Melissa Falcão, da Comissão de Arboviroses da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). A consequência é uma espécie de apagão nos dados concretos e projeções mais turvas para o curto prazo.

Até o início de outubro deste ano, computavam-se 477 mil casos prováveis de dengue no país. É uma redução de quase 50% em relação ao mesmo período de 2020. Cabe lembrar que esse foi o primeiro ano da pandemia, mas não houve uma piora na subnotificação na época em que a doença costuma ter seu pico, o verão, uma vez que o primeiro caso confirmado de Covid-19 só ocorreu no final de fevereiro.

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“As condições meteorológicas têm influência direta na proliferação dos mosquitos. O verão aumenta o risco por causa das chuvas e da elevação de temperatura, pois as fêmeas procuram locais quentes e com água parada para depositar os ovos”, explica Melissa.

“Os cuidados, porém, devem permanecer o ano todo, já que os ovos podem sobreviver no ambiente por até 450 dias”, enfatiza. Tão logo haja uma pequena quantidade de água à disposição daquele ovinho resistente, a larva do mosquito é liberada.

A recomendação da infectologista se aplica ao Brasil inteiro. Embora historicamente o Nordeste e o Sudeste sejam responsáveis por quase dois terços dos contágios, o cenário muda quando se consideram números proporcionais.

Em 2021, o Centro-Oeste tinha menos casos absolutos do que essas duas regiões, mas liderava o índice per capita (episódios a cada 100 mil habitantes). Foram mais de 495, ante os 216,8 da segunda colocada, a Região Sul. O estado mais afetado proporcionalmente ficava em outra parte do Brasil: o Acre teve 1 512 casos por 100 mil habitantes, enquanto nenhum outro estado sequer chegou a 600.

Como não há tratamento específico para a infecção — o foco é o alívio dos sintomas —, a mobilização deve se centrar na prevenção da transmissão do vírus. “E a forma mais eficaz é o combate ao mosquito”, ressalta a médica da SBI.

<span class="hidden">–</span>Ilustração: Eber Evangelista e Laura Luduvig/SAÚDE é Vital

Onde estávamos, aonde vamos

O que hoje parece impossível o Brasil conseguiu em 1955: na época, diante da escalada de casos de febre amarela, outro mal disseminado pelo Aedes, o governo promoveu campanhas de fumigação pelo país e considerou o mosquito erradicado. Mas, na década seguinte, ele voltou, trazido acidentalmente por navios que vinham de outros continentes.

E veio para ficar, aproveitando-se da urbanização caótica e da falta de saneamento básico. “Hoje não se fala mais em erradicação do mosquito. A ideia é conseguir controlar a população em um nível em que ela fique reduzida a ponto de não haver transmissão da dengue”, contextualiza a bióloga Margareth Capurro, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora de um projeto de pesquisa com linhagens geneticamente modificadas do inseto.

Mosquitos transgênicos versus mosquitos da natureza: eis o plano que envolve alterar o DNA do Aedes para minar sua proliferação no meio ambiente. Funciona assim: insetos geneticamente modificados são criados em laboratório e colocados em uma área para se reproduzir entre os nativos, só que parte da prole não consegue sobreviver, enquanto a outra carrega um gene que limita a expansão das gerações seguintes.

Esse é o princípio por trás da tecnologia desenvolvida pela empresa britânica Oxitec e trazida há uma década para o Brasil. O emprego dos mosquitos transgênicos em cidades do interior paulista foi capaz de suprimir mais de 95% da população de Aedes.

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A evolução (e popularização) dessa tática está disponível a partir deste mês com a Caixa do Bem, que pode ser comprada por qualquer governo, condomínio ou pessoa física. Em vez de soltar mosquitos adultos no ambiente, como em fases anteriores, a caixa conta com ovos e insumos para que o Aedes transgênico passe seu ciclo de vida no lugar onde a novidade for instalada.

“O mosquito adulto é sensível à temperatura e muitas vezes não sobrevive ao transporte. A caixa é mais viável e fácil de escalonar”, diz Natalia Ferreira, diretora-geral da Oxitec no Brasil. A ideia é alargar frentes de batalha contra o vetor. “A dengue é um problema tão sério que precisamos combinar essas novas ferramentas às demais práticas”, pontua Natalia.

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Outra proposta que mira a proliferação do mosquito são cápsulas boladas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com óleo de tomilho, produto que consegue aniquilar as larvas do Aedes, que saem dos ovos após três dias na água.

“A cápsula só começa a liberar o óleo aos poucos depois desse período”, conta a engenheira química Ana Silvia Prata, líder dos estudos. Nos testes realizados em Adamantina (SP), a estratégia, que aguarda aval da Anvisa, eliminou até 100% das larvas em 48 horas.

<span class="hidden">–</span>Infográfico: Eber Evangelista e Laura Luduvig/SAÚDE é Vital

Bactérias e vacinas

Em vez de atacar a reprodução dos mosquitos, um método levado a cabo pelo Ministério da Saúde em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) atua em sua capacidade de espalhar doenças. Os protagonistas do projeto são as bactérias do tipo Wolbachia. Presentes naturalmente em alguns mosquitos, elas impedem que o vírus da dengue se desenvolva dentro do inseto.

A sacada aqui é inserir cada vez mais Aedes com esses micro-organismos no ambiente, criando uma população menos danosa aos seres humanos. “Nesse caso, não há nenhuma modificação genética, nem no mosquito nem na bactéria”, esclarece Melissa.

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Ok, mas e a vacina contra a dengue? Tem boas notícias à vista nesse departamento também.

Façamos um retrospecto antes: em 2016, a Sanofi-Pasteur trouxe ao Brasil o primeiro imunizante do gênero, aprovado após estudos mundo afora. Só que, pouco depois do lançamento, veio um percalço: descobriu-se que os vacinados que nunca haviam contraído dengue podiam ter um caso mais grave da doença caso fossem infectados posteriormente. Com isso, o produto é restrito hoje a pessoas de 9 a 45 anos que tiveram dengue antes.

Agora, a nova aposta para atingir um público bem mais amplo é uma vacina da Takeda em vias de aprovação pela Anvisa. “Não foram observadas nas pesquisas reações com soronegativos [quem não teve dengue na vida], como no caso da outra vacina. No acompanhamento até três anos depois da aplicação, não houve nenhum risco desse tipo”, relata Abner Lobão, diretor-executivo de assuntos médicos da Takeda no Brasil.

Os avanços pela imunização, contudo, não significam que poderemos baixar a guarda contra o Aedes. Afinal, mesmo com a dengue subjugada, o mosquito continua espalhando chikungunya, zika e febre amarela.

Nesse sentido, precisamos melhorar as estratégias já consagradas, mas nem sempre adotadas. Ampliar o saneamento, evitar focos de água parada, utilizar repelente… Após o surto de casos de microcefalia em bebês provocados pelo zika vírus no Nordeste em 2015, por exemplo, a doença nunca mais voltou àquele patamar em grande parte devido ao esforço na região para minimizar a presença do Aedes.

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Na visão da médica da SBI, o enfrentamento do mosquito tem de virar rotina para a população. “Pelo menos uma vez na semana devemos verificar se os focos de água parada estão limpos ou cobertos”, orienta Melissa. No cerco a dengue e afins, o clássico e o moderno não só podem conviver como armam a sinergia mais protetora.

<span class="hidden">–</span>Infográfico: Eber Evangelista e Laura Luduvig/SAÚDE é Vital

E a vacina que já está no mercado?

A vacina da Sanofi (Dengvaxia), que também mira os quatro sorotipos da dengue, chegou ao Brasil em 2016, mas apresentou limitações. Hoje ela é contraindicada a pessoas que nunca tiveram dengue antes. Isso porque, caso contraiam a doença depois da vacina, há o risco de desenvolver quadros mais graves de dengue.

Assim, a Anvisa restringe a indicação desse imunizante a pessoas que já travaram contato com a doença, tenham entre 9 e 45 anos e morem em áreas endêmicas. A expectativa é que o produto da Takeda possa ser utilizado em maior escala.

O que você pode e deve fazer

Proteção contra o mosquito demanda atitudes de cada um de nós

  • Sem lixo acumulado
    Mantenha lixeiras tampadas e evite depósitos de lonas e pneus. Descarte tudo que possa alojar água.
  • Nada de água parada
    Cubra ou vire para baixo recipientes que possam juntar água e atrair os mosquitos. Inspecione o quintal toda semana.
  • Telas e mosquiteiros
    Seu objetivo é impedir que os insetos entrem no pedaço sem cortar a circulação de ar. Bem úteis no verão.
  • Repelentes
    Em ambientes externos, mantêm os vetores afastados da pele. A aplicação de inseticida na casa também contribui.

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As outras pragas

Não é só a dengue que o Aedes espalha… Veja as demais infecções

  • Zika
    Embora os sintomas costumem ser leves, gestantes devem ter atenção dobrada, pois o vírus está relacionado a um aumento no risco de microcefalia em bebês.
  • Chikungunya
    Febre, dor nas articulações, fadiga e erupções cutâneas podem surgir até uma semana após a infecção. É capaz de causar dores crônicas nas juntas.
  • Febre amarela
    Provoca, como diz o nome, febre, além de náuseas e mal-estar, podendo levar a complicações fatais. Felizmente, há vacina, aplicada desde a infância.
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Prevenir transtornos mentais pode evitar evasão escolar e repetência

Pelo menos dez a cada cem meninas que estavam fora da série escolar adequada para sua idade poderiam ter acompanhado a turma se transtornos mentais, principalmente os externalizantes (como déficit de atenção e hiperatividade), fossem prevenidos ou tratados. O impacto negativo dessas condições mentais também se reflete na repetência: cinco em cada cem alunas não teriam reprovado. Para meninos, seriam prevenidos 5,3% dos casos de distorção idade-série e 4,8% das reprovações.

Esses resultados foram revelados em uma pesquisa inovadora, liderada por um grupo de cientistas brasileiros e britânicos e publicada na revista Epidemiology and Psychiatric Sciences. Os pesquisadores buscaram estimar o peso e o impacto de diferentes tipos de condições psiquiátricas nos resultados educacionais, usando como base dados de 2014.

Concluíram, em linhas gerais, que os transtornos externalizantes tiveram efeitos negativos mais amplos e robustos sobre a educação quando comparados a psicopatias ligadas a angústias e medos. Ao analisar por gênero, foram particularmente prejudiciais para as mulheres, resultando em níveis mais baixos de alfabetização e perpetração de bullying.

Nesse caso, pelo menos 11 em cada cem registros de atos de violência física ou psicológica praticados por meninas em escolas poderiam ser evitados se transtornos externalizantes fossem prevenidos ou tratados. Já para o sexo masculino, as fobias e a depressão implicaram maiores índices de abandono escolar.

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“Em termos epidemiológicos, geralmente os meninos têm mais transtornos externalizantes, chegando a ser o dobro de casos do que em meninas. Mas, no desfecho educacional, vimos que é um fator de risco maior para as alunas“, conta o pesquisador Mauricio Scopel Hoffmann, primeiro autor do artigo e professor adjunto do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

“Uma das hipóteses que explicam esse achado é o estigma social, já que não é esperado das mulheres um comportamento agressivo ou exacerbado. Com isso, elas podem sofrer mais e apresentar pior desempenho escolar. O mesmo vale para a depressão no caso de meninos. Há uma cobrança da sociedade de que eles não chorem ou externem sentimentos”, acrescenta.

O trabalho, desenvolvido no pós-doutorado de Hoffmann, teve apoio da FAPESP (projetos 14/50917-0 e 08/57896-8) e do Newton Fund, por meio do Newton Fellowship obtido pelo professor e pela pesquisadora Sara Evans-Lacko, na Academy of Medical Sciences do Reino Unido, realizado na London School of Economics and Political Sciences entre 2019 e 2020.

Os dados foram obtidos no Estudo Brasileiro de Coorte de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos na Infância (BHRC), uma grande pesquisa de base comunitária que acompanha crianças e jovens desde 2010.

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Fazendo a análise das informações referentes a 2014, os pesquisadores contextualizaram as descobertas em uma perspectiva populacional, mas já alertando que eram estimativas conservadoras. C

oncluíram que, à época, pelo menos 591 mil estudantes poderiam estar na série adequada para sua idade se transtornos psiquiátricos fossem detectados preventivamente e tratados. No caso da repetência, seria possível evitar que cerca de 196 mil alunos ficassem retidos na mesma série.

De acordo com Hoffmann, mesmo tendo passado quase sete anos da base de cálculo, o quadro obtido na pesquisa pode ser replicado para os dias atuais, fornecendo evidências da importância do tratamento e da prevenção de condições psiquiátricas para melhores resultados educacionais.

Em 2014, o Brasil registrou 49,8 milhões de matrículas em 188,7 mil escolas de educação básica (públicas e particulares). Em 2020, esses números caíram para 47,3 milhões e 179,5 mil, respectivamente.

Estudo longitudinal

Considerado um dos principais acompanhamentos sobre riscos de transtornos mentais em crianças e adolescentes já realizados na psiquiatria brasileira, o BHRC, também conhecido como Projeto Conexão – Mentes do Futuro, faz parte do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD).

Apoiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o INPD tem como coordenador-geral o professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) Eurípedes Constantino Miguel Filho e conta com mais de 80 professores e pesquisadores de 22 universidades.

Para o estudo recém-publicado, os pesquisadores analisaram dados da linha de base (iniciada em 2010) e de acompanhamento durante três anos (até 2014) do BHRC, considerando uma etapa de triagem e uma de avaliação. A pesquisa usou pesos de pontuação de propensão (PSWs, na sigla em inglês) para equilibrar os participantes com e sem condições psiquiátricas para as características basais.

Na triagem, nos dias de matrícula obrigatória em 2010, pais de alunos de 22 escolas públicas de Porto Alegre (RS) e 35 de São Paulo foram convidados a participar. Para a avaliação completa houve a seleção de 2 511 famílias. Os alunos tinham de 6 a 14 anos.

Os transtornos mentais foram divididos em três grandes grupos: de angústia e sofrimento (como transtorno depressivo maior e depressivo não especificado, bipolar, obsessivo-compulsivo e pós-traumático); de medos (pânico, fobias específicas, separação e transtorno de ansiedade social) e os transtornos externalizantes (déficit de atenção, hiperatividade, conduta de oposição e desafio).

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O grupo usou a Avaliação de Comportamento de Desenvolvimento e Bem-estar e calculou as porcentagens de risco atribuíveis à população para estimar a proporção de resultados educacionais adversos ligados a condições psiquiátricas. As análises foram conduzidas separadamente para homens e mulheres.

“Um dos objetivos foi analisar o quanto dos eventos escolares não desejados poderiam ser evitados se os transtornos mentais fossem tratados e em qual medida. Obtivemos um resultado prático muito claro, já que desfechos como distorção idade-série, repetência, desistência escolar e perpetuação de bullying estão ligados”, afirma Hoffmann à Agência FAPESP.

Segundo ele, além dos impactos negativos na educação, principalmente para as mulheres, os problemas da saúde mental podem limitar no futuro oportunidades socioeconômicas, aumentando desigualdades de gênero no mercado de trabalho, por exemplo.

Estimativas apontam que uma a cada quatro pessoas pode desenvolver quadros de transtornos mentais ao longo da vida, estando entre as principais causas de incapacitação na faixa etária dos 14 aos 50 anos. De acordo com projeções da Organização Mundial da Saúde (OMS), o custo para a economia mundial com esses casos deve chegar a US$ 6 trilhões em 2030.

Fazer o diagnóstico correto é o primeiro passo. Isso ajudaria a reduzir alguns problemas enfrentados nas escolas. Políticas que incentivem a detecção e intervenção precoce de problemas de saúde mental na infância e adolescência podem ter consequências profundas no nível educacional dos cidadãos”, completa o pesquisador.

O Censo Escolar 2020, do Ministério da Educação, apontou que a taxa de distorção idade-série alcança 22,7% das matrículas dos anos finais do ensino fundamental e 26,2% no médio. Além disso, há um aumento dessa taxa a partir do 3º ano do ensino fundamental, sendo mais alta no sétimo ano e na primeira série do ensino médio.

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Essa distorção resulta, entre outros fatores, do total de alunos reprovados ou que abandonam os estudos durante determinado ano letivo. Dificilmente esse processo é reversível, já que muitas vezes a criança, ao atrasar nos anos iniciais da educação básica, permanece nessa situação até a adolescência, ao concluir o ensino médio ou, eventualmente, até uma evasão.

Esse quadro explica o fato de o Brasil ter o quarto maior percentual de jovens que repetiram de série pelo menos uma vez durante a vida escolar entre 79 países analisados em relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Dos estudantes brasileiros de 15 anos, 34% repetiram a série ao menos uma vez. O Marrocos tem o pior resultado, com 49,3%, seguido da Colômbia (40,8%) e do Líbano (34,5%). O documento, divulgado no ano passado, tem como base indicadores do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês).

Segundo Hoffmann, que é médico, uma parceria entre educação e saúde, reforçando a prevenção, seria um dos caminhos para reduzir os efeitos negativos nas escolas. “Um exemplo são os casos de déficit de atenção [TDAHs]. Sabemos que somente 20% deles são detectados no Brasil. Se a taxa aumentasse em dez pontos percentuais, para 30%, estimamos que cerca de 8 mil repetências poderiam ser evitadas a cada ano.”

Uma das alternativas é contar com a ajuda de professores nesse trabalho. Para isso, o grupo de cientistas criou um material psicoeducativo para pais e docentes tratando do tema e mostrando a importância do papel de mediação para evitar estigmas.

Pandemia de Covid-19

Durante a pandemia, o tema da saúde mental ganhou destaque e novos estudos, principalmente para avaliar os impactos do isolamento social e das aulas a distância para crianças e jovens. Hoffmann diz que um dos trabalhos dos cientistas agora, liderado pela pesquisadora na área de neurociência e comportamento humano Patrícia Pinheiro Bado, é investigar a relação do engajamento em aprendizado online com a saúde mental dos alunos.

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evidências de estudos britânicos publicados recentemente mostrando que, durante a pandemia de Covid-19, jovens, adultos e idosos com transtornos mentais prévios tiveram mais consequências prejudiciais, como a perda de empregos, problemas de saúde e emocionais.

No Brasil, com as escolas fechadas por causa da COVID-19, o Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estimou que 1,5 milhão de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentavam as aulas (remota ou presencialmente) em novembro de 2020. Outros 3,7 milhões de alunos matriculados deixaram de ter acesso a atividades escolares e não conseguiram continuar aprendendo em casa.

O artigo The impact of child psychiatric conditions on future educational outcomes among a community cohort in Brazil, dos pesquisadores Mauricio Scopel Hoffmann, David McDaid, Giovanni Abrahão Salum, Wagner Silva-Ribeiro, Carolina Ziebold, Derek King, Ary Gadelha, Eurípedes Constantino Miguel, Jair de Jesus Mari, Luis Augusto Rohde, Pedro Mario Pan, Rodrigo Affonseca Bressan, Ramin Mojtabai e Sara Evans-Lacko, pode ser lido em: www.cambridge.org/core/journals/epidemiology-and-psychiatric-sciences/article/impact-of-child-psychiatric-conditions-on-future-educational-outcomes-among-a-community-cohort-in-brazil/56B83E2BF23C701A4747AD2595F347BB#.

*Este texto foi originalmente publicado pela Agência FAPESP.

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Prevenir transtornos mentais pode evitar evasão escolar e repetência Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br

O relógio da cárie: o momento em que as bactérias atacam os dentes

A cárie dental ainda é um dos problemas bucais mais comuns. Ela não escolhe idade, mas aparece em qualquer pessoa que lhe deixar o ambiente propício, com acúmulo de alimentos entre os dentes e ausência de higiene bucal. E é mais séria do que muita gente imagina: a falta de tratamento pode levar à perda dentária, situação ainda frequente na população brasileira.

De acordo com a última Pesquisa Nacional em Saúde, realizada pelo IBGE, 11% da população brasileira perdeu todos os dentes e 33% necessita de alguma prótese dentária. Um dos motivos é justamente a cárie. Esses dados preocupantes apontam para uma ineficiência nos cuidados bucais adotados pelos cidadãos.

É um problema que começa cedo: seis a cada dez crianças de até 5 anos por aqui têm pelo menos um dente cariado. Entre os adolescentes, a média é de seis dentes, subindo para 20 entre os adultos.

A cárie é considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma doença crônica, desigualmente distribuída, com forte ônus econômico e de impacto na qualidade de vida das pessoas. Causa dor, perda dos dentes, ausência na escola ou no trabalho, prejuízos no desempenho diário e na estabilidade emocional.

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A prevenção é essencial para revertermos esse cenário. Para evitarmos ou, ao menos, diminuirmos a presença das cáries na população, recomendamos a escovação ao menos três vezes ao dia, priorizando escovas de cerdas macias e planas, associadas ao uso do fio dental ou de escovas interdentais, após as refeições principais.

As bactérias presentes na boca consomem o açúcar dos alimentos, transformando-o em ácidos. E estes ácidos, por sua vez, desmineralizam os dentes de forma progressiva. No início, surgem manchas brancas, que posteriormente podem se tornar cáries.

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A orientação é que após 20 a 30 minutos da ingestão dos alimentos açucarados ou ácidos seja feita a desorganização da placa bacteriana pela escovação dental. Outro conselho é consumir esses alimentos junto às refeições principais e não no intervalo entre elas. Assim, não deixamos de escovar os dentes e impedimos os mecanismos oportunistas e favoráveis ao problema. Sim, é uma espécie de relógio da cárie.

Além da higiene, sugerimos que se evite o consumo de açúcares e é fundamental realizar consultas periódicas ao dentista. Prevenir é sempre o melhor remédio e o flúor é um grande coadjuvante no controle da cárie. Independentemente da maneira usada, seja por meio das águas fluoretadas, da pasta de dente ou da aplicação no consultório, a substância segue como essencial no combate à doença.

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No Brasil, desde 1974 a legislação estabelece como obrigatória a fluoretação da água em todas as Estações de Tratamento de Água (ETA). A medida preventiva ocorre há mais de 60 anos em todo o mundo. É uma prática que tem auxiliado significativamente na diminuição dos índices de cárie. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2003, 69% das crianças de 12 anos tinham cárie. Já em 2010 esse número caiu para 56%.

Nem sempre as cáries são visíveis ou causam sintomas, e, quanto antes forem detectadas, mais fácil é o tratamento. Por isso, é de suma importância visitar o dentista. Até porque o tártaro, que é a calcificação da placa bacteriana, deve ser removido em consultório. E as bactérias também estão implicadas em outros problemas, como gengivite e periodontite.

Por isso, não postergue ou negligencie os cuidados com a saúde bucal. Ela garante longevidade aos dentes e às restaurações e torna o ambiente menos vulnerável à cárie e afins.

* Camillo Anauate Netto é cirurgião-dentista e conselheiro do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (Crosp)

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O relógio da cárie: o momento em que as bactérias atacam os dentes Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br