Você provavelmente já encontrou pelas redes sociais o famigerado #sqn, aquele jeito telegráfico de dizer que tal coisa é muito legal, “só que não”. Agora, imagine uma língua totalmente diferente do português que deu um jeito de incorporar um conceito parecido na própria estrutura das palavras, criando o que os linguistas apelidaram de “sufixo frustrativo” – um #sqn que faz parte da própria história do idioma.
Bom, é exatamente assim que funciona no kotiria, um idioma da família linguística tukano que é falado por indígenas do Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com a Colômbia. Para exprimir a função “frustrativa”, o kotiria usa um sufixo (ou seja, alguns sons colocados no fim da palavra) com a forma -ma. Você quer dizer que foi até um lugar sem conseguir o que queria indo até lá? Basta pegar o verbo “ir”, que é wa’a em kotiria, e acrescentar o sufixo: wa’ama, “ir em vão”.
Dá para encontrar detalhes surpreendentes como esse em todas as mais de 150 línguas indígenas ainda faladas no território brasileiro. Elas são apenas a ponta do iceberg do que um dia existiu por aqui, diga-se. Como mostra o livro Índio Não Fala Só Tupi, lançado neste ano pelas linguistas Bruna Franchetto e Kristina Balykova, calcula-se que pelo menos 80% dos idiomas que eram falados no Brasil desapareceram de 1500 para cá. (O exemplo acima e os outros que você vai conhecer nesta reportagem vêm do livro de Franchetto e Balykova.)
Mesmo assim, o país continua abrigando uma das maiores diversidades linguísticas do planeta, com a presença de idiomas tão diferentes entre si quanto o alemão do árabe ou os idiomas do Congo em relação ao mandarim (aliás, algumas das línguas “made in Brazil” usam tons, semelhantes a notas musicais, para diferenciar o significado de algumas sílabas, algo que o mandarim também faz).
O famoso tupi antigo ou tupinambá, falado em boa parte do litoral brasileiro quando Pedro Álvares Cabral pisou aqui, era só uma delas. A propósito, esqueça aquele negócio de “tupi-guarani”, expressão que é meio como dizer “português-espanhol”. O tupi é uma língua; o guarani é outra – e, aliás, existem diversas formas de guarani, nem sempre inteligíveis entre si.
O único emprego correto do substantivo composto “tupi-guarani” é o que serve para designar uma subfamília linguística com esse nome, a qual engloba dezenas de idiomas. Entre seus membros ainda usados no cotidiano estão o nheengatu (um descendente moderno do tupi do Brasil-Colônia), os vários “guaranis”, o tapirapé e o guajá. Uma subfamília, como você pode imaginar, faz parte de uma família linguística mais ampla – nesse caso, a família tupi propriamente dita, que inclui ainda outras dezenas de línguas, como o munduruku, o juruna, o tupari e o suruí.
Existem pelo menos outras três grandes famílias linguísticas no país (veja no infográfico à direita), diversas outras famílias de porte mais modesto e, de quebra, várias línguas consideradas isoladas, ou seja, sem nenhum parentesco identificável com outros idioma. É mais ou menos o mesmo caso do basco, falado na Espanha e na França – com a diferença de que o basco é um dos únicos casos desse tipo no território europeu.
Essa comparação ajuda a entender o tamanho da riqueza linguística brasileira. Com raríssimas exceções (fora o basco, temos também o finlandês e o húngaro, por exemplo), todos os falares ainda utilizados hoje na Europa fazem parte de uma única família linguística, a do indo-europeu. (Esse “indo-” no nome não é por acaso – várias línguas importantes da Índia também fazem parte da família.) Pode não parecer à primeira vista, mas é praticamente certo que o alemão, o russo, o grego, o português e o lituano descendem de um único idioma pré-histórico, que hoje chamamos de protoindo-europeu (ou PIE, para encurtar).
Sabe-se que são necessários pelo menos alguns milhares de anos para que uma língua-mãe se espalhe e se diversifique a ponto de dar origem a uma variedade tão grande de “línguas-bisnetas”. Ao que tudo indica, isso aconteceu múltiplas vezes na América do Sul, tanto no caso da família tupi quanto no dos outros grandes grupos (aruak, carib e macro-jê). Esse milagre da multiplicação dos idiomas muitas vezes também é acompanhado por expansões geográficas dos falantes delas, que podem transportar sua língua, sua cultura e, em alguns casos, seus genes por vastas regiões de um continente.
Para que isso aconteça, é comum que os falantes das famílias linguísticas em expansão contem com alguma vantagem em relação a outras etnias, que lhes permita estender sua influência cultural por regiões maiores ou mesmo dominar diretamente outros povos. No caso do protoindo-europeu, a principal hipótese é que seus falantes estivessem entre os primeiros a domesticar o cavalo nas estepes entre a Europa e a Ásia. O bicho teria trazido não só mais mobilidade para essas populações como uma vantagem em batalha, já que guerreiros montados eram os equivalentes dos tanques de guerra no mundo antigo.
E por aqui? Bem, um ponto intrigante é que várias das grandes famílias linguísticas do Brasil parecem ter surgido na Amazônia e, em especial, em áreas como o sudoeste da região, não muito longe da zona de transição com o cerrado. Trata-se de uma pista importante porque, por incrível que pareça, a região amazônica, e em especial sua porção Sudoeste, é um dos poucos lugares do mundo onde a agricultura foi inventada de maneira independente a partir de 10 mil anos atrás.
Lá foram domesticadas espécies de plantas que hoje são importantes para o mundo todo, como a mandioca, o cacau e o amendoim. Faz algum sentido, portanto, imaginar que diferentes grupos amazônicos usaram seus talentos agrícolas para aumentar sua população e se espalhar pelo resto do Brasil e do continente.
Mas línguas não têm certidão de nascimento, claro. Então, como diabos é possível saber onde as famílias linguísticas surgiram? Uma comparação entre regiões diferentes da Europa ajuda a entender como a coisa funciona. Na Inglaterra e na Escócia existem dialetos do inglês – é só ver a diferença entre a fala de um londrino e de um escocês.
Mas a diversidade nem se compara com o abismo entre as línguas “primas” do inglês – holandês, alemão, sueco etc. Isso é sinal de que esse grupo todo, o das línguas indo-europeias germânicas, evoluíram durante milênios nos arredores da atual Alemanha e só uma delas “migrou” para as ilhas britânicas (por volta de 1,6 mil anos atrás).
Por aqui é a mesma coisa. Como você já viu, o tupi antigo era falado, de modo mais ou menos uniforme, numa faixa enorme do litoral brasileiro em 1500. Mais ao Sul e no interior, na bacia do Rio Paraná e no Paraguai, havia as várias formas de guarani, só um pouquinho diferentes do tupi antigo.
No entanto, em Rondônia, existe uma grande variedade de línguas da família tupi, concentradas num espaço relativamente curto e muito diferentes das primas que existiam no litoral. Conclusão mais provável: a família tupi surgiu nos arredores de Rondônia (5 mil anos atrás é a época mais aceita) e se expandiu posteriormente na direção da costa (estima-se que a partir de uns 2 mil anos atrás).
Dá para traçar o mesmo raciocínio com outras famílias linguísticas, embora nem tudo esteja tão claro quanto no caso da família tupi, uma das mais bem estudadas. De qualquer modo, essa análise comparativa permite uma espécie de viagem no tempo, que ajuda a entender padrões de migração, contatos antigos entre diferentes culturas, as tecnologias que usavam, os mitos que contavam os ambientes que esses povos habitaram ao longo de milênios.
Esse tipo de levantamento deixa claro que não existem línguas “primitivas”. Certamente não no sentido de idiomas supostamente toscos ou simples, com poucos recursos de expressão, mesmo quando seus povos não desenvolveram civilizações tecnológicas e regidas por Estados, como a nossa.
Pelo contrário, os idiomas nativos do Brasil conseguem ser muito precisos e econômicos, usando detalhes gramaticais para retratar coisas que, em português, a gente precisa de uma frase inteira para dizer. Ou então ajudam os falantes das línguas ocidentais a enxergar a lógica das palavras de maneiras que nem passariam pela nossa cabeça.
Eu acabei de escrever “nossa cabeça”. Já parou para pensar no que significa o pronome “nós”? Tá, a gente sabe, primeira pessoa do plural, mas o “nós” pode incluir a pessoa com quem você está conversando ou se referir a você e outro sujeito, deixando o interlocutor de fora.
O contexto é o que determina isso em português, mas o kwazá, uma língua isolada de Rondônia falada por apenas algumas dezenas de pessoas, possui um nós inclusivo e um nós exclusivo. Qual a diferença? Veja as duas frases, com a tradução literal embaixo e a tradução “explicada” logo depois, abaixo (os dois tipos de “nós” estão marcados em negrito):
Original: Ya-‘a-tara-ni
Literal: Comer-nós (inclusivo)-primeiro-vamos!
Adaptado: ‘Bora, vamos (eu e você, com quem estou falando, juntos) comer primeiro!
Original: Ya-‘axa-tara-ni
Literal: Comer-nós (exclusivo)-primeiro-vamos!
Adaptado: Por favor, deixe-nos (eu e a pessoa comigo) comer primeiro!
Outra propriedade presente em diversas línguas indígenas, que aparece no kotiria, mas também na língua hup, sem parentesco direto com ela e membro de uma pequena família de idiomas do Alto Rio Negro, é a serialização verbal – ou seja, a capacidade de transformar vários verbos numa coisa só, que ajuda a descrever uma ação complexa. Prepare o fôlego, porque o negócio é comprido. Em hup, é possível dizer o seguinte (agora o negrito marca os verbos que formam a serialização verbal):
Original: Tiy-his’ap-b’uyd’äh-yë-yí’ay-mah
Literal: Empurrar-quebrar-jogar-entrar-completo-dizem
Adaptado: Ele empurrou-a (uma porta) até que a quebrou, jogou-a de lado e entrou, pelo que dizem
Os idiomas originários do nosso território também empregam técnicas muito econômicas para deixar claro, de maneira rápida, de onde veio a informação passada por alguém numa conversa – o que parece conferir um ar meio cético, quase detetivesco, a algumas frases.
A gente também faz isso em português, com ênfases ou adendos do tipo “Fui eu que vi, com estes olhos que a terra há de comer” ou num mais frugal “Você parece cansado”. Mas veja como o sanöma, um idioma da família linguística yanomami falado perto da fronteira com a Venezuela, resolve isso de um jeito simples e elegante (agora, os negritos marcam a chamada “evidencialidade” da informação):
Original: Sama tikelaso ki-pi
Literal: Anta caiu (testemunhado)
Adaptado: (Eu vi que) a anta caiu
Original: Sama tikelaso tha-pi
Literal: Anta caiu (não testemunhado)
Adaptado: (Me disseram que) a anta caiu
Original: Wa sanömo noa
Literal: Você banhar-se (inferência)
Adaptado: (Parece que) você tomou banho
Talvez o mais fascinante, além da engenhosidade gramatical, é perceber como as palavras do cotidiano abrem uma janela para o modo de vida desses povos.
Voltemos à língua hup. Nesse idioma, alguns advérbios tão comuns como os nossos “aqui”, “ali” e “lá” são mét’ah, “rio abaixo”, e wá’ah, “do outro lado do rio”. Entre os verbos, temos hi, que significa “seguir rio abaixo”, mas também “descer de um lugar elevado”, e sop, que é tanto “se afastar do rio” quanto “subir uma colina”.
Mas é nos substantivos que esse lado metafórico da língua hup realmente brilha. Algumas das palavras mais comuns de quem vive na floresta tropical são, como você pode imaginar, k’et (“folha”), tëg (“tronco”), tat (“fruta”) e tít (“cipó”). Mas dá para combinar tít com a palavra para “barriga”, e formar tok-tít, “cipó-de-barriga”, ou seja, “intestino”. Ou tëg com pih para formar “tronco de música”, ou “flauta”.
É como se cada parte das árvores se tornasse uma porta para conceitos novos, maiores que a soma das palavras individuais. E isso pode ser tudo, menos “primitivo”.
A sofisticação das línguas indígenas Publicado primeiro em https://super.abril.com.br/feed
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