Dá para ir dos Estados Unidos até a Rússia andando. Apenas 3,8 quilômetros separam a ilha Diomedes Menor, no Alasca, da ilha Diomedes Maior, na Sibéria. O mar entre os dois pedaços de terra congela durante o inverno, o que possibilitaria uma travessia a pé. A diferença de fuso horário é de 22 horas, mas daria para passar de um lado ao outro em 22 minutos.
A proximidade entre os dois países não é só uma curiosidade para contar na mesa de bar: sem ela, provavelmente não haveria ocupação humana na América antes da colonização europeia. As populações inuíte, maia ou tupi jamais teriam desenvolvido cultura e civilizações complexas – porque esses grupos étnicos não existiriam.
Hoje, o trecho que vai do leste da Sibéria ao oeste do Alasca é conhecido como Estreito de Bering – famoso por ser o caminho que os humanos usaram para atravessar da Ásia à América. O mar é relativamente raso, então basta que o nível da água abaixe algumas dezenas de metros para que o fundo oceânico apareça na superfície. Isso acontece de tempos em tempos ao longo da história geológica do planeta. Nesses momentos, forma-se nos arredores do Estreito de Bering uma bela massa continental, com 1,6 milhão de km². Os geólogos chamam essa região intermitente de Beríngia. Sua última edição terminou há 11,7 mil anos.
Esse intervalo coincidiu com um fenômeno importante para a humanidade. O Homo sapiens, surgido na África há 300 mil anos, já tinha se espalhado por boa parte do planeta há coisa de 20 mil anos. Mas faltava um pedaço fundamental: este em que você está assentado hoje, as Américas.
A última Beríngia foi o primeiro lar dos humanos que dariam origem aos nativos das Américas. Mas ela não foi só um caminho entre a Ásia e o nosso continente. Milhares de pessoas nasceram e morreram na Beríngia. Elas viviam em comunidades, caçavam mamutes para comer e fazer roupas, pescavam e faziam fogueiras para suportar o inverno. Tudo isso antes de pisarem na América pela primeira vez. A Beríngia é a terra natal de boa parte dos nossos genes – se você é brasileiro, afinal, provavelmente há DNA nativo nas suas células.
O difícil é saber exatamente como esses povos viviam. Os registros de ocupação humana por lá estão cobertos por um mar revolto e congelante. Escavar artefatos na Beríngia submersa é quase impossível. Por isso, ela guarda mais perguntas do que respostas. Um dos debates mais acalorados da arqueologia é sobre quando e como os humanos saíram da Sibéria para se tornarem ocupantes das Américas. Nas próximas páginas, uma viagem para a região perdida que foi o primeiro lar dos nativos americanos.
Eras do gelo
A Beríngia surgiu e desapareceu repetidas vezes ao longo da história. Na verdade, é raro existir água entre a Sibéria e o Alasca, como acontece hoje. Durante boa parte dos últimos 2,5 milhões de anos, a Ásia e a América estiveram conectadas. A Beríngia aparece durante os períodos glaciais, popularmente conhecidos como “eras do gelo”. É quando a manta branca do Polo Norte se expande, descendo até territórios que hoje fazem parte de Canadá, EUA, Europa e Rússia.
Os últimos seis períodos glaciais duraram mais ou menos 120 mil anos cada. Esse intervalo coincide com certas variações na órbita terrestre, os Ciclos de Milankovitch. É uma combinação de fatores, como a inclinação da Terra e o formato de sua trajetória em torno do Sol. A variação é pequena, mas suficiente para bagunçar o clima do planeta.
A trajetória da Terra alterna entre momentos mais circulares e mais ovais. Por isso, às vezes calha de o planeta estar mais distante do Sol (quando ele está na pontinha do ovo). Se esse momento coincidir com o verão do Hemisfério Norte, a Terra receberá menos calor do Sol e não dará conta de derreter o gelo que caiu no inverno. Ela vai acumular mais gelo no inverno seguinte, e assim por diante. Está formada uma era do gelo.
Daí para frente é lógica: como boa parte da água se transforma em geleiras, o nível do mar diminui. Mais terra fica exposta. Durante o último período glacial, que terminou há 11,7 mil anos, o nível do mar estava 160 metros abaixo do atual. Isso também ocorreu nas eras do gelo que vieram antes: “De forma geral, 90% do Pleistoceno [período que vai de 2,5 milhões a 11,7 mil anos atrás] foi glacial. É mais comum existir Beríngia do que não existir Beríngia. Ela tem uma história longa de passagens”, diz André Strauss, geólogo e arqueólogo que estuda a chegada dos humanos na América.
De fato: a trajetória dos humanos pela Beríngia só começa há 25 mil anos, mas animais passaram por lá antes, claro. Um deles foi o leão beringiano, que veio da Eurásia e chegou à América do Norte há 300 mil anos. Ele se alimentava principalmente de bisões, e era 25% maior do que os leões africanos de hoje.
Já os ancestrais dos camelos fizeram o caminho contrário: surgiram na América e cruzaram a Beríngia entre 5 e 7 milhões de anos atrás. Já notou a semelhança entre os camelos, hoje seres do Oriente Médio, e as lhamas andinas? Aí está a explicação. Os dois fazem parte da família Camelidae, que surgiu nas Américas. Uma parte deles permaneceu no continente, e a outra cruzou para a Ásia.
Paraíso submerso
Imagine a situação: você mora em um lugar árido, com invernos rigorosos. Seu prato preferido é carne de grandes mamíferos, como os mamutes e bisões. Ao longo do tempo esses animais vão migrando em direção ao nascer do Sol, sentido Leste. A decisão racional é segui-los.
Era mais ou menos essa a situação em que os humanos da Sibéria se encontravam entre 25 e 24 mil anos atrás. Perto do clima horrendo do atual leste da Rússia, a Beríngia era um refúgio ecológico. Próxima ao mar, a região recebia ventos litorâneos que traziam umidade e temperaturas mais amenas, com vegetação mais rica, que passaram a atrair os grandes mamíferos. E, atrás deles, humanos.
Por muito tempo acreditou-se que a Beríngia era tão hostil quanto a Sibéria: composta apenas por uma vegetação rasteira e pouco convidativa a animais. No entanto, amostras coletadas no fundo do Mar de Bering guardam registros fósseis de insetos e pólen. Eles indicam a presença de arbustos, flores e árvores, como salgueiros, pináceas, entre outras. No final das contas, o clima na Beríngia não devia ser muito diferente do que se encontra no Alasca atualmente. Um paraíso comparado à Sibéria da era glacial (ou mesmo à de hoje).
Toda a história seria ainda mais fascinante se tivéssemos provas concretas da ocupação humana por lá. Pois é: nenhum artefato ou qualquer outro resquício foi encontrado na região onde havia a Beríngia. Acredita-se que as populações humanas viviam próximas à costa, onde o clima era mais amigável. Essa região, porém, é justamente a que está submersa.
Não faltam tentativas de escavar debaixo d’água. O antropólogo James Dixon participou de duas expedições para procurar possíveis sítios arqueológicos no fundo do mar – usando sonares e fazendo análises de amostras do solo, por exemplo. No entanto, as pesquisas ainda não resultaram em achados.
“Todo esse modelo de pesquisa ainda está na sua infância. Há muitos estudos com naufrágios debaixo d’água […], mas procurar sítios de ocupações humanas é bem mais difícil”, diz Dixon. “As assinaturas arqueológicas se parecem com o que ocorreria normalmente na natureza.”
Se as tentativas de escavação ainda não deram em nada, como sabemos que os humanos de fato moraram na Beríngia antes de entrar na América? A última peça do quebra-cabeça começou a ser revelada a partir do século 21, com a genética de populações.
Incubadora de humanos
A verdade é que os humanos não dependiam de pontes de terra para atravessar trechos de mar. Há 35 mil anos, por exemplo, já tínhamos ocupado o Japão, chegando lá de barco mesmo. Não é nenhum absurdo imaginar que alguns grupos conseguiriam atravessar da Ásia para a América da mesma forma.
“A gente tem essa ideia de que um corpo d’água impediria a vinda de pessoas do velho para o novo mundo. Mas os humanos já eram navegadores. A água não era um problema”, diz Strauss. No final das contas, a existência do continente foi bem mais importante para a formação genética dos primeiros americanos.
A população nativa americana atual é bastante diferente dos seus ancestrais siberianos. Alguns pesquisadores propuseram hipóteses alternativas à colonização pelo Estreito de Bering, sugerindo diferentes levas migratórias que fizessem sentido com os achados arqueológicos na América.
Mas os estudos genéticos esclareceram a questão: analisando a taxa de mutações acumuladas em diversas populações nativas da América, concluiu-se que os primeiros colonizadores permaneceram 10 mil anos isolados de outros povos antes de entrar no continente, tempo suficiente para acumular diferenças genéticas. Eles se isolaram entre 25 mil e 24 mil anos atrás. Onde? Muito provavelmente na Beríngia.
Outra evidência que apoia essa hipótese está no DNA das ossadas de duas crianças que viveram há 11,5 mil anos, encontradas no Alasca. Elas são mais próximas geneticamente dos nativos americanos do que de qualquer outra população. Mesmo assim, as análises do genoma mostram que o ancestral comum mais próximo entre as crianças e os nativos americanos viveu há 21 mil anos.
O consenso entre os pesquisadores é o de que não havia populações na América há 21 mil anos. Como o DNA delas também é diferente do das populações atuais da Sibéria, conclui-se que esse ancestral comum viveu num lugar isolado, que não é parte da Ásia nem das Américas: a Beríngia, provavelmente. Essa população é chamada de “antigos beringianos”.
O pit-stop de 10 mil anos não foi voluntário. Por mais que viver na Beríngia fosse melhor que aguentar a aridez da Sibéria, o clima da América ainda era bem mais convidativo. Os humanos só não entraram antes no continente porque havia um glaciar no meio do caminho. Há 21 mil anos, no auge do período glacial, uma camada de gelo cobria o Canadá e o norte dos Estados Unidos.
O gelo começou a derreter há cerca de 18 mil anos, mas isso não significa que alguns gatos pingados não pudessem ter entrado na América antes. Em uma pesquisa de setembro de 2021, pegadas humanas encontradas no Novo México foram datadas entre 20 e 23 mil anos. Se confirmada por mais evidências, a descoberta alteraria toda a cronologia da ocupação humana na América.
Mas as evidências arqueológicas amplamente aceitas pela comunidade científica datam de, no máximo, 15 mil anos. Essa data faz mais sentido com o que é visto geológica e geneticamente. A principal hipótese é a seguinte: os humanos da Beríngia entraram na América em diferentes ondas migratórias.
A primeira delas teria ocorrido a partir de 18 mil anos atrás, a data do início do degelo. Alguns humanos teriam abandonado a Beríngia e navegado entre arquipélagos e pela costa oeste da América até chegarem ao extremo sul do continente. O sítio arqueológico de Monte Verde, no Chile, contém artefatos de 14,8 a 15 mil anos. Ou seja: os primeiros americanos teriam atravessado a América de ponta a ponta em 3 mil anos, com a ajuda de barcos.
Mas o mar não foi o único caminho. Uma outra parcela da população também deve ter entrado na América caminhando, alguns milhares de anos depois. O degelo da porção terrestre abriu caminho para que os humanos chegassem à América do Norte pela via pedestre 15 mil anos atrás.
A população que ficou “incubando” na Beríngia daria origem a todos os nativos americanos, das tribos da América do Norte às do Atacama, passando pelas civilizações da América Central e as populações da Amazônia. Boa parte das línguas indígenas atuais do Brasil teria se desenvolvido há 5 mil anos onde hoje fica Rondônia – uma indicação de que as primeiras ocupações do território brasileiro aconteceram a partir do Oeste.
A genômica ainda revela uma última surpresa sobre a colonização americana: os primeiros beringianos não foram os últimos a cruzar o Estreito de Bering. Alguns povos nativos da América do Norte também são descendentes de populações que entraram no continente após o último período glacial. Apenas 50% do genoma dos inuítes, por exemplo, provém dos primeiros americanos. A outra metade vem de uma população asiática que chegou ao continente há 6 mil anos. A verdade é que o povoamento da América foi mais complexo e dinâmico do que parece. Pouco a pouco, a ciência revela os mistérios dessa jornada, a mais épica das migrações humanas.
Fontes: Tábita Hünemeier, geneticista da USP; André Strauss, geólogo e arqueólogo da USP; Nicolás Strikis, geólogo da USP; James Dixon, antropólogo da Universidade do Novo México; Yukon Beringia Interpretive Centre; National Park Service.
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