Hoje é Dia Mundial das Doenças Inflamatórias Intestinais (ou DII), que se dividem em dois principais tipos: retocolite ulcerativa e doença de Crohn. Estima-se que elas afetem 10 milhões de pessoas ao redor do globo.
De acordo com a gastroenterologista Dídia Bismara Cury, diretora do Centro Especializado em Doenças Inflamatórias Intestinais da Clínica Scope, em Campo Grande (MS), alguns fatores podem explicar por que vemos um aumento na incidência desses quadros no mundo todo.
“Há uma melhor capacidade de diagnóstico, mas essas condições também podem ser associadas a mudanças no estilo de vida”, informa a médica, que também é professora visitante do Centro de Crohn e Colite do Brigham and Women’s Hospital da Universidade Harvard (EUA).
Ela ressalta que, em uma época não muito distante, as crianças brincavam na terra, o parto normal predominava, o aleitamento materno durava mais tempo, nossas refeições eram basicamente caseiras, etc.
“Tudo isso tem influência direta no contato com micro-organismos em geral”, explica. E, de acordo com ela, a menor interação com esses agentes resultou, provavelmente, em uma resposta imunológica mais fraca ou exacerbada.
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Dessa maneira, após algum tipo de gatilho, o sistema imune pode se desequilibrar e disparar um processo inflamatório crônico no trato gastrointestinal.
Diarreia intensa, além de dor e distensão abdominal estão entre os desconfortos encarados por muitos pacientes.
Não à toa, esses quadros podem interferir negativamente na saúde mental dos indivíduos.
Conversamos com Dídia sobre o dia a dia de quem convive com doenças inflamatórias intestinais e as estratégias que podem ser colocadas em prática para colaborar com a manutenção do bem-estar emocional dos pacientes. Confira:
VEJA SAÚDE: Como a qualidade de vida dos pacientes é afetada? É verdade que até o sono é prejudicado?
Dídia: Sim, as perturbações do sono são altamente frequentes em portadores de doenças inflamatórias intestinais.
Um recente estudo, publicado em 2022 na revista Dig Dis Sci, revelou que 69% dos pacientes com esse tipo de condição apresentavam diferentes distúrbios do sono e 50% tinham insônia.
Isso foi observado principalmente em pessoas com a doença ativa, ou seja, que sofriam com movimentos colônicos intensos, seguidos de manifestações clínicas que induziam a ida ao banheiro durante noite.
Aliás, tem sido sugerido por pesquisadores que fatores como esses podem ser considerados para avaliar o risco de futuras complicações e, assim, contribuir para a avaliação do prognóstico de pacientes internados.
Vale a pena ressaltar que quando falamos de qualidade de sono não nos referimos ao tempo de horas dormidas, e sim a questões relacionadas à qualidade do descanso. É o que chamamos de sono reparador.
Pessoas com distúrbios do sono tendem a apresentar maior labilidade de humor e estresse, fatores que interferem não apenas na qualidade de vida, mas que contribuem também para acentuar o próprio estágio da doença.
Em termos de qualidade de vida, há diferenças relevantes entre os tipos de doenças intestinais, como a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn?
Em ambas as situações há uma carga psicossocial alta interrelacionada diretamente com a qualidade de vida.
Ao mencionar qualidade de vida, incluímos não apenas o sono, mas outros aspectos, como a insegurança de ter uma doença crônica, as dúvidas sobre medicações e acompanhamento, receios em relação à gravidez entre as mulheres, o medo de câncer de intestino, etc.
O que parece ter alto impacto nesse grupo específico de pessoas é o estado do quadro. Ou seja, se a doença está em atividade ou remissão.
Por exemplo: um paciente com doença ativa pode apresentar anemia, fadiga, ou mesmo diarreia frequente em decorrência do processo inflamatório. Há ainda um risco de deficiências de vitaminas e de ferro, o que prejudica as atividades cotidianas.
Por isso, o ponto mais relevante ao olhar para ambas as doenças é avaliar se estão em remissão ou não.
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O que dizem os estudos mais recentes sobre essa relação das DII com a saúde mental?
Sabemos que técnicas que possam interferir na relação entre corpo e mente contribuem de modo significativo na qualidade de vida dos pacientes.
Nesse sentido, dados do Centro de Doenças Inflamatórias da Universidade Harvard (BIDMC), revelaram que a ioga, o mindfulness e a hipnoterapia podem ajudar na melhora da ansiedade, da depressão e até mesmo dos sintomas desses pacientes.
Essas práticas, associadas aos medicamentos, parecem contribuir para bons resultados – isso quando comparamos àqueles indivíduos que utilizam somente os remédios.
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Todo tratamento leva à remissão da doença?
Na maioria das vezes, sim.
Com o advento de novas terapêuticas, a história das doenças inflamatórias mudou drasticamente.
Isso pode ser visto ao longo do tempo por meio da queda nos índices de hospitalizações e de intervenções cirúrgicas, além de uma redução nos registros de complicações severas, como o câncer de cólon.
A remissão desejada pelos especialistas nessa área está pautada na cicatrização profunda da mucosa intestinal, vista pela biópsia que se obtém através dos exames de imagem, a exemplo da colonoscopia.
No acompanhamento desse paciente, esses parâmetros são fundamentais para confirmar a eficácia do tratamento e evitar de modo significativo as complicações.
O maior entrave que vemos no tratamento é solidificar o uso continuado das medicações.
É que muitas vezes o paciente melhora clinicamente e deixa de dar seguimento ao tratamento, com visitas médicas contínuas e exames de rotina. Isso desenha um caminho sombrio de prováveis complicações.
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Atividade física é sempre relacionada ao bom estado da saúde mental. Para esses indivíduos, é desafiador ter uma rotina ativa?
Estamos vivendo em uma era em que a importância da atividade física tem sido amplamente divulgada em todas as áreas da saúde.
E nossa experiência tem revelado que esses pacientes querem saber ao certo qual atividade física podem praticar.
Para eles, exercícios rotineiros têm demonstrado capacidade de diminuir o risco de fadiga e de exacerbação dos sintomas.
Ainda há evidências de que melhoram a densidade óssea, o que é de suma importância, uma vez que sabidamente a perda da massa óssea é comum em portadores de doença inflamatória intestinal.
Esse benefício parece ser ainda mais expressivo quando o exercício é realizado com um profissional especializado e de forma individualizada.
Há também cada vez mais evidências de um impacto positivo da atividade física na mortalidade, na qualidade de vida, na composição corporal, na força e no desempenho físico dos pacientes.
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Recentemente, no que diz respeito especificamente à doença de Crohn, foram observados benefícios diretos dos exercícios na remissão clínica e no estado da doença.
A questão é que descobertas recentes revelaram que pacientes com DII parecem ser menos ativos do que pessoas saudáveis.
Sintomas gastrointestinais e psicológicos precisam ser considerados nessa população, já que podem limitar a prática de exercícios.
Vale destacar que o sedentarismo é capaz de culminar no aumento do peso, que contribui de forma desfavorável para as doenças inflamatórias.
Isso porque altera a biodisponibilidade dos fármacos, contribuindo, muitas vezes, para maiores índices de ansiedade, depressão, fadiga e dor. Ou seja, pode piorar de um modo geral o quadro desses pacientes.
Mas é preciso lembrar que o exercício intenso, principalmente aquele praticados por atletas, poderia induzir as chamadas colites isquêmicas, sendo prejudicial a esses pacientes.
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E qual o papel da alimentação no controle dessas doenças?
Nunca se falou tanto em alimentação saudável como nos últimos tempos. Ela não é impositiva, mas é necessária para todos nós.
Na verdade, se possível, é interessante contar com uma abordagem nutricional associada, com profissionais experientes e capacitados para esse grupo tão específico.
Dessa maneira, evitamos uma restrição alimentar desnecessária, por exemplo, que pode acentuar a desnutrição – situação que não é incomum nesses pacientes.
Além do tratamento convencional contra as DII, o que dá para fazer de imediato para manter a saúde mental em dia?
Eu e minha equipe trabalhamos há mais de vinte anos com as doenças inflamatórias, tanto com pacientes do Brasil quanto dos Estados Unidos, e vemos situações similares: angústia, medo, dúvidas, ansiedade, expectativa frente aos medicamentos, etc.
Então, o acolhimento médico de uma forma profunda me parece fundamental.
É preciso se colocar no lugar do paciente, ter sentimento de empatia e esclarecer tudo sobre a retocolite ou Crohn, como sintomas, manifestações fora e dentro do intestino, além de características dos medicamentos e dos exames.
Com as mulheres, é fundamental conversar sobre a segurança medicamentosa, inclusive durante a gestação e a amamentação. É necessário discutir ainda sobre o momento ideal de engravidar.
Atitudes assim contribuem para a saúde mental, porque você transforma o novo em algo rotineiro e seguro.
Sendo assim, a relação médico-paciente é um ponto fundamental para contribuir para o bem-estar.
Acredito que esse olhar humano e mais profundo previne a ansiedade, e não somente do paciente, mas da família como um todo. Isso é crucial, porque os familiares também precisam se sentir seguros.
E é sempre válido observar se há fatores associados a uma depressão, por exemplo. Esse cuidado tem que fazer parte da primeira consulta e de todas as outras subsequentes.
Esse olhar faz parte da rotina de uma boa relação e nunca foi tão decisivo como agora, em que tudo está na internet.
Um recente estudo conduzido no Brasil, especificamente na região Centro-Oeste, avaliou em qual medida o chamado “Dr. Google” poderia influenciar na mudança de tratamento (ou seja, uma alteração na conduta do paciente) ou mexer com o estado emocional dos portadores de doença inflamatória.
Publicado em uma revista de alto impacto científico, ele mostrou que a internet não foi capaz de induzir ou aumentar o estado de ansiedade dos portadores de doença inflamatória intestinal. Esse fator esteve diretamente relacionado com a relação médico-paciente.
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O modo de enfrentar o diagnóstico também interfere na saúde mental?
Sim. É importante compreender que, muitas vezes, as doenças podem ser encaradas com uma forma de transformação e crescimento pessoal.
Ressignificar a dor pode fazer toda diferença, assim como assumir a posição de vencedor diante de uma doença crônica.
Dividir a dor (através de psicoterapia, por exemplo), pode fazer esse paciente aprender a trabalhar melhor com essa fase, e com todas as demais que poderão vir. E é fator protetor contra depressão e ansiedade.
Em complemento à terapia, vale apostar, como já mencionei, em técnicas de relaxamento, como ioga, mindfulness, etc.
Essas práticas ajudam os pacientes a desenvolver uma conexão mais profunda com eles próprios.
Vários estudos são bem claros ao mostrar que essas abordagens, assim como a atividade física, liberam mediadores, ou hormônios do bem-estar, a exemplo de dopamina, serotonina, endorfinas, entre outros.
Vale a pena ressaltar que a religiosidade, cujo conceito difere de ter religião, também contribui para a melhora do bem-estar.
Inúmeras pesquisas nesse campo, com portadores de Crohn e retocolite, já demonstraram claramente essa relação. Inclusive, há questionários capazes de aferir esses dados (como a religiosidade) de forma numérica, comprovando que esse aspecto ajuda na saúde mental.
Em resumo, a saúde mental envolve diversos aspectos, incluindo exercício físico, mindfulness, ioga, boa alimentação, relacionamento interpessoal, terapia, relação médico-paciente, uso de medicações de forma correta…
Tudo isso faz a diferença no bem-estar emocional dos portadores de doença inflamatória intestinal.
A saúde mental de quem tem doença inflamatória intestinal exige atenção Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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