Hoje, 17 de maio, é o Dia Internacional Contra a Homofobia. A data foi escolhida porque nesse dia, em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a homossexualidade uma doença.
Mais de 30 anos depois, contudo, a diversidade de gênero e a orientação sexual ainda são motivos de preconceito. Entre as consequências dessa visão retrógrada, uma série de problemas para a saúde.
Para entender como e por que isso acontece, conversamos com o médico infectologista Ricardo Vasconcelos, da Universidade de São Paulo (USP). Rico, como é conhecido, atua há décadas atendendo a população LGBTQIA+.
Da sua experiência, fundou o Núcleo de Medicina Afetiva (Numa), uma clínica multiespecialidades voltada a atender com empatia quem quer que seja.
VEJA SAÚDE: De que maneira a homofobia afeta a saúde?
Rico Vasconcelos: A gente sabe que existe uma dificuldade de vincular as pessoas em geral a um cuidado de saúde, e que há disparidades evidentes.
Mulheres se cuidam mais do que homens, pessoas com mais idade se cuidam mais do que jovens… Mas, quando pensamos em diversidade sexual, independente do gênero ou da idade, fica todo mundo fora do acesso à saúde.
Isso porque você precisa conhecer o paciente para poder ajudá-lo, e a gente sabe que há um desconhecimento muito grande sobre a população LGBT. Se o médico não sabe com quem está lidando, não consegue atender direito.
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Geralmente, quais dificuldades uma pessoa LGBT enfrenta quando vai procurar ajuda médica?
São pessoas com vivências muito particulares. Como o profissional de saúde muitas vezes não conhece, não respeita – e, por consequência, não tem vontade de cuidar de uma pessoa dessa.
Logo, ela não só não recebe a atenção que deveria como não vai querer voltar.
O caso do exame de papanicolau é um exemplo prático. Mulheres lésbicas são muito maltratadas quando vão ao ginecologista, que está acostumado a atender mulheres heterossexuais. Com isso, elas acabam não voltando e, assim, deixam de fazer as avaliações de rotina.
Essa falta de assistência resulta em maior incidência de câncer de colo de útero e de mama, já que elas não se submetem a exames de rastreamento.
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Como você avalia o problema no Brasil hoje? Estamos progredindo ou regredindo?
Eu acho que, no Brasil, a gente tem ilhas, ou seja, exemplos de lugares e profissionais que se dedicam a tentar melhorar essa iniquidade.
Ambulatórios e clínicas especializados atendem bem, mas, quando você vai num pronto-socorro comum, a história é outra.
No geral, não estamos progredindo. O que é muito triste, porque temos uma política pública criada há mais de 10 anos que não é colocada em prática [a Política Nacional de Saúde Integral LGBT].
Existe ainda uma agenda estratégica do Ministério da Saúde para ampliar o acesso à prevenção do HIV, publicada desde o governo Temer, que também nunca foi tirada do papel.
Pessoas LGBT enfrentam a homofobia também na rede particular?
Isso é até assustador, porque mesmo se você tiver um plano de saúde caro e for num hospital super bom, o risco de encontrar um profissional que não te atenda bem é enorme.
Alguns poucos lugares são ilhas de excelência, e é isso que buscamos fazer na clínica que montei, a Numa, que tem essa pegada de acolher todas as pessoas, independente da sua identidade de gênero e orientação sexual.
Gosto de falar dessa maneira porque não somos uma “clínica LGBT”. É um espaço para todo mundo.
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Por que você criou a Numa e como tem sido essa experiência até agora?
Ela nasceu na minha cabeça. Eu trabalhava como infectologista há muito tempo, cuidando de gays e trans, e alugava espaços em clínicas que nada tinham dessa pegada.
Quando eu encaminhava um paciente para outro especialista dessas clínicas, como o coloproctologista ou o psiquiatra, por exemplo, ele voltava falando que tinha sido maltratado.
Aí, comecei a encaminhar para profissionais de fora, que eu já conhecia. Aí, no início da pandemia, pensamos: por que não juntar tudo num lugar só? Então, fundamos a clínica e, de lá para cá, temos todos os feedbacks positivos possíveis.
É muito comum ouvir dos pacientes a mesma história: “Eu já tinha um médico, mas não me sentia acolhido”. Essa questão do acolhimento é um grande atrativo.
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Que condições de saúde acontecem de maneira mais frequente no público LGBT? E por quê?
Independente de ser gay, cis [pessoa que se identifica com o gênero “biológico”], heterossexual, trans, o que for, o indivíduo está sujeito a apresentar pressão alta, diabetes, enfim, doenças comuns na população…
Mas o profissional de saúde precisa saber que há questões específicas quando se trata desse público.
Por exemplo: a prevalência de HIV é maior nos homens gays – na população de São Paulo em geral, 0,4% e, neles, 25%.
Ou seja, um em cada quatro homens gays tem HIV, então isso não pode ser deixado de fora na hora do atendimento em saúde. Em mulheres trans, a taxa passa dos 30%.
Por que essa diferença?
Por conta de fatores individuais, como o fato de que homens gays e mulheres trans fazem mais sexo anal, que oferece um maior risco de transmissão do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), mas especialmente por questões sociais e programáticas.
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A discriminação nos serviços de saúde é uma dessas questões, que atrapalha a prevenção e o acesso ao tratamento.
Uma mulher trans tem mais dificuldade para chegar numa Unidade Básica de Saúde (UBS) e fazer um exame de HIV. Ela enfrenta olhares tortos, má vontade, comentários pejorativos…
E questões programáticas dizem respeito ao que o poder público deveria fazer para controlar essa prevalência. É comum achar que é culpa do indivíduo, que basta usar camisinha, mas as pessoas se esquecem de que muitos fatores de risco não são individuais.
Ao falar do HIV, não há o risco de reduzir a população LGBT a isso?
Sim. Essa população tem doenças crônicas comuns e precisa de cuidados para essas demandas também. Mas sabemos que algumas condições são muito prevalentes nesses indivíduos, então o profissional de saúde precisa estar preparado para orientar sobre elas.
É o caso ainda da depressão e da ansiedade, que são bem frequentes, por conta dessas questões sociais.
Uma pessoa que é colocada para fora de casa ou não fala com a família por conta da sua sexualidade, ou não é aceita no mercado de trabalho, certamente tem mais chance de ter transtornos psiquiátricos, abusar de certas substâncias, pensar em suicídio…
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Esse público também precisa ser orientado a fazer exames preventivos, praticar atividades físicas, comer bem, etc. Mas, às vezes, o foco todo é no HIV e na saúde mental, e o resto fica de fora.
Como essa questão é trabalhada na formação de profissionais de saúde?
Infelizmente, não é ensinada nas universidades da maneira que seria a ideal.
Exatamente por isso vemos uma proliferação de cursos, simpósios e ligas de saúde integral da população LGBT: os próprios alunos têm essa demanda.
A universidade não consegue oferecer de forma adequada, então eles mesmo se organizam e buscam cursos online que falem sobre o tema.
Por fim, como combater a homofobia no sistema de saúde?
Uma boa saída é conscientizar todas as pessoas, sejam profissionais da saúde ou não, de que elas estão envolvidas no processo de adoecimento da população LGBT.
O motorista de ônibus que faz uma piadinha, ou olha de maneira pejorativa pra uma mulher trans que está tentando ir à UBS, está sendo responsável pelo seu adoecimento.
E isso vale para todo mundo: a moça da padaria, o segurança na porta do postinho…
Todo mundo tem que entender que, quando discrimina um indivíduo LGBT, está colocando gasolina nessa iniquidade de acesso à saúde e, assim, prejudicando a saúde dessas populações.
Só com essa conscientização é que vamos conseguir mudar de verdade esse panorama brasileiro.
Por enquanto, só pessoas interessadas nesse tema conseguem mudar comportamentos e o tipo de acolhimento que oferecem. Na população em geral, ainda predominam homofobia e transfobia.
Entrevista: a homofobia como problema de saúde pública Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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