sábado, 6 de fevereiro de 2021

Incidente do Passo Dyatlov: nova hipótese explica desaparecimento na URSS

Em 1959, um grupo formado por nove estudantes e um instrutor do Instituto Politécnico de Ural em Yekaterimburgo saiu para uma expedição de esqui nos montes Urais, na Rússia – na época, parte da URSS. Eles estavam acostumados; praticavam o esporte há anos. No caminho, um dos estudantes sentiu dores da caminhada e decidiu retornar. Ele não sabia, mas nunca mais veria os colegas.

Entre 1 e 2 de fevereiro, o grupo desapareceu. Alguns dias após o sumiço, uma equipe de busca encontrou os corpos dos nove exploradores em condições bizarras: todos estavam espalhados a distâncias consideravelmente grandes do acampamento. A barraca estava rasgada, alguns dos corpos estavam nus ou seminus, e três deles exibiam ferimentos graves: crânio esmagado, olhos pendurados na cabeça e até uma língua faltando.

O Incidente do Passo Dyatlov, como ficou conhecido o episódio, permanece um dos maiores mistérios não resolvidos do século passado. Ninguém sabe quem (ou o que) matou os estudantes, nem por que os corpos estavam nus ou destroçados. O caso é um prato cheio para amantes de teorias da conspiração: há threads no Reddit que especulam o envolvimento do governo soviético, de aliens ou até de um yeti, o abominável homem das neves.

Décadas depois, dois cientistas da Suíça afirmam ter encontrado uma explicação plausível para o incidente. Em artigo publicado na revista Communications Earth & Environment, do grupo Nature, a dupla apresenta uma hipótese realista, mas não menos assustadora: o grupo pode ter sido surpreendido por um tipo de específico e incomum de avalanche – que apesar de, pequena e silenciosa, poderia desencadear a uma sequência de eventos capazes de explicar as circunstâncias estranhas em que o grupo foi encontrado.

Entenda o caso

A expedição foi organizada por Igor Dyatlov, um estudante de engenharia de 23 anos do Instituto Politécnico de Ural (atualmente Universidade Técnica Estadual de Ural). Ele convidou mais nove amigos, sete homens e duas mulheres, para participar. Todos eram jovens: tinham entre 20 e 24 anos. A exceção era Alexander Zolotaryov, um instrutor de esportes da universidade, que tinha 38 anos. 

A caminhada teve início no dia 27 de janeiro. Os próximo cinco dias foram bem documentados pelos presentes em fotos e diários, encontrados após a morte do grupo. Além disso, um dos estudantes, Yuri Yudin, acompanhou o começo da jornada, mas decidiu voltar para casa por problemas de saúde.

Os estudantes registraram que, no dia 1º de fevereiro, as condições meteorológicas pioraram muito. Ventos fortes atrapalhavam a visão e estavam confundido o caminho do grupo. Por isso, eles decidiram acampar naquele dia para esperar o clima melhorar. Montaram uma barraca aos pés da montanha Kholat Saykhl – um nome que significa “montanha da morte” na língua dos Mansi, um povo nativo da região.

O que aconteceu naquela noite é um mistério. Semanas após o desaparecimento do grupo, no dia 26 de fevereiro, uma equipe de busca encontrou o acampamento montado por eles. A barraca estava rasgada – de dentro para fora, determinou a investigação – e todos os pertences dos esportistas haviam sido abandonados lá dentro, incluindo itens essenciais para encarar o inverno russo, como sapatos. Nas semanas seguintes, os corpos começaram a ser encontrados.

Dois deles estavam em uma floresta a 500 metros do acampamento: homens seminus, que não exibiam sinais de violência. Mais três corpos foram localizados meio caminho entre mata e o acampamento, em posições que sugerem que eles estavam tentando retornar à barraca quando morreram. Também não havia traumas ou indícios de luta. A causa da morte de todos foi registrada como hipotermia – naquela noite, a temperatura era de 25 ºC negativos.

A busca pelos últimos quatro corpos durou mais dois meses – e quando eles finalmente foram encontrados, enterrados sob grossas camadas de neve, a investigação virou de ponta cabeça.

Três deles tinham sinais muito claros de violência extrema: um dos corpos exibia um crânio quebrado pra lá de fatal, e os outros dois tinham recebido um impacto enorme no peito, capaz de romper as costelas – além de ferimentos macabros mencionados no início do texto, como a língua ausente e os olhos fora de órbita. Para piorar a bizarrice, alguns corpos apresentavam níveis de radiação acima do normal em suas roupas – e suas peles estavam acinzentadas ou alaranjadas de maneiras incomuns.

As autoridades soviéticas não conseguiram descobrir muita coisa: registraram que alguma “força natural desconhecida” havia causado a morte do grupo. Nos corpos que tinham ferimentos, o impacto dessa força seria parecido com o de uma atropelamento por um carro. Já os que morreram de hipotermia provavelmente tiveram que deixar a barraca por causa da urgência – o que explicaria os rasgos feitos de dentro para fora e os pertences abandonados – e nunca mais conseguiram retornar.

A hipótese mais plausível e pé no chão é que o grupo tenha sido surpreendido por uma avalanche inesperada. Alguns dos integrantes foram impactados diretamente por ela e tiveram seus corpos destruídos; outros conseguiram fugir a tempo, mas morreram de hipotermia no cenário pós-desastre. Mas os relatórios da investigação ressaltaram que uma avalanche teria deixado muitos sinais no cenário – que permaneceriam perceptíveis mesmo semanas após o desaparecimento. E não havia indícios dessa natureza no local.

A situação digna de livro da Agatha Christie e a falta de transparência das autoridades soviéticas – que não deixaram muita informação vazar para os países do lado de cá da cortina de ferro – desencadearam uma série de teorias da conspiração que até hoje ganham projeção em fóruns de discussão na internet. Há quem especule que a URSS esteja envolvida na morte dos estudantes, talvez por acidente, durante os testes de algum tipo de arma. 

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Ataques de terceiros, como serial killers ou de indígenas do povo Mansi, também são levantadas como possibilidade. Mas a verdade é que não há nenhum indício de que houvesse mais gente no cenário e ou de que alguém tenha se aproximado da barraca – tudo indica que os exploradores saíram por vontade própria mesmo, fugindo de algo. Além disso, os nativos Mansi são pacíficos e nunca tiveram problemas com outros russos.

Outra hipótese é que uma disputa de ordem romântica entre os membros grupo tivesse levado a algum tipo de briga ou conflito generalizado que terminou da pior maneira. No campo mais sobrenatural, há quem especule envolvimento de aliens ou de criaturas míticas, como yetis. Há até relatos não confirmados de avistamento de luzes no céu naquela noite – a palhaça alienígena não tem limites.

As novas explicações

A repercussão do caso é tanta que, em 2019, o governo russo abriu uma nova investigação do caso. E chegou novamente à conclusão pé-no-chão: uma avalanche causou a morte do grupo. Mas as autoridades não forneceram detalhes técnicos nem respondeu aos buracos na história.

Uma das pontas soltas dessa hipótese, já mencionada, é que uma avalanche teria deixado muito mais indícios no local. Outra crítica é que a inclinação do local onde eles acampavam era de apenas 23º, e considera-se que o declive mínimo para a formação de uma avalnche seja de 30º. Por fim, uma avalanche não seria capaz de causar os ferimentos observados – como o sumiço de uma língua em um dos corpos.

Em um novo estudo, porém, os cientistas suíços Alexander Puzrin e Johan Gaume, do Laboratório de Simulação de Neve e Avalanches da Escola Politécnica Federal de Lausane, mencionam um tipo de avalanche que explicaria todos esses poréns. Um deslizamento de neve pequeno e com características bastante específicas, conhecido como “avalanche de placa”, explicaria bem os acontecimentos daquela noite. 

Avalanches de placa (em inglês, slab avalanches) acontecem quando há bastante vento depositando neve fresca sobre um chão já coberto com neve. Assim, surgem duas “camadas” de neve que não se misturam. A camada de cima, mais recente, pode se desprender da debaixo e deslizar em blocos ou placas – daí o nome. Entenda neste vídeo:

Calcula-se que apenas 10% das avalanches sejam desse tipo – mas que elas sejam responsáveis pela maior parcela de mortes entre montanhistas, porque são mais discretas e imprevisíveis.

Segundo a equipe, as condições do Incidente do Passo Dyatlov eram favoráveis ao surgimento de uma dessas avalanches. Primeiro porque eles descobriram que a inclinação do terreno naquele local era na verdade maior do que divulgado anteriormente: 28º, e não 23º. O acúmulo de neve na parte baixa do terreno camuflou o declive real. Além disso, ressaltam os autores, o limite de 30º normalmente citado é uma boa média, mas não uma regra – especialmente no caso de avalanches de placa, que não são tão grandes.

Durante a noite, enquanto o grupo dormia, uma camada de neve fresca poderia facilmente ter se acumulado logo acima do recuo escavado para montar barraca – e então se desprendido da camada inferior. Abaixo, veja um desenho em corte da cena, fornecido pelos pesquisadores. Wind slab é a camada de neve mais recente, que se acumulou trazida pelo vento.

<span class="hidden">–</span>Gaume/Puzrin/Divulgação

Quanto aos ferimentos, os autores argumentam que a ideia de que a avalanche não poderia tê-los causado é enganosa. Eles descobriram em seus modelos que, se as pessoas atingidas estivessem dormindo de costas em determinada posição da barraca, o ângulo em que a neve os atingiria seria suficiente para quebrar ossos, por exemplo. Ferimentos específicos – como a língua faltando em uma das mulheres – poderiam ter sido causado por animais após a morte dos estudantes, uma possibilidade que foi levantada desde a investigação original.

Inserindo todas essas variáveis em simulações de computador, a equipe viu que seria possível sim que esse tipo de avalanche pudesse ter ocorrido justamente naquele local. Como ela foi pequena e repentina, não deixou muitos sinais para os investigadores que chegaram semanas depois. Os estudantes que não foram atingidos diretamente podem ter rasgado a barraca para fugir – carregando os feridos consigo. Infelizmente, todos acabaram eventualmente sucumbindo ao frio extremo.

Os autores admitem que não conseguem cobrir todos os detalhes do caso – e nem têm essa intenção. “Resolver o mistério do Passo Dyatlov é uma tarefa enorme, que está muito além do escopo deste artigo. Esperamos, no entanto, que nosso trabalho possa contribuir para determinar a plausibilidade da hipótese da avalanche”, escrevem no estudo. De fato, eles são os primeiros a reunir um conjunto sólido de evidências e formular uma hipótese séria, que não envolve elementos sobrenaturais ou conspiratórios.

 

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