Você lembra onde estava na manhã de 11 de setembro de 2001? A empresária paranaense Adriana Maluendas, de 50 anos, não consegue esquecer.
Hospedada no 6° andar do Hotel Marriott, que fazia parte do complexo World Trade Center (WTC), em Nova York, ela tinha prova às 9h30 no 17° andar da Torre Sul. Ainda estava à procura de um sapato que combinasse com a bolsa quando, às 8h46, um barulho estremeceu o quarto 635.
Assustada, tentou ligar para a recepção, mas ninguém atendeu. “Preciso descer agora”, pensou. Ao correr pelas escadas, muitos hóspedes, ainda de pijama e aos gritos, empurravam uns aos outros. Ali, Adriana levou o primeiro de seus muitos tombos. Na calçada, tentou ficar o mais longe possível dos escombros.
“Parecíamos animais escapando de um incêndio na floresta”, compara. Durante a fuga, foi empurrada e caiu no chão. Pisoteada, quebrou dentes, fraturou costelas, ganhou hematomas. “A nuvem era escura e o ar, irrespirável. Não conseguia enxergar a um palmo de distância”, recorda. “Tinha certeza de que não conseguiria sair com vida daquele pesadelo.”
Mas ela conseguiu. É uma das sobreviventes do pior atentado terrorista de todos os tempos, os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, nos Estados Unidos, que deixaram um saldo de quase 3 mil mortos e 7 mil feridos. Um episódio, no mínimo, traumático.
Os dicionários ensinam que “trauma” deriva de “traumatismo” e significa “estado resultante de ferimento grave” — vem do grego traumatos, que quer dizer “ferida”. Tanto o corpo como a mente podem ser traumatizados.
“Em geral, usamos a palavra ‘trauma’ para nos referir a um evento estressor potencialmente marcante, como um assalto. Mas o mais adequado seria usá-la para falar da resposta emocional que cada pessoa vivencia após ser exposta a esse evento”, explica Christian Haag Kristensen, professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
“Nesse sentido, trauma é uma resposta complexa, caracterizada por diferentes reações: há as fisiológicas, como insônia e taquicardia; as interpessoais, como isolamento e desconfiança; as cognitivas, como memórias indesejáveis e dificuldade de concentração; e as emocionais, como raiva e medo”, destrincha o psicólogo.
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Cada ser humano reage a algo traumático de um jeito. No livro Os Traumas do Dia a Dia — Como Blindar Seu Cérebro contra o Estresse e a Ansiedade (Melhoramentos), a neurocientista americana Tracey Shors conta a história de um casal que, certo dia, se envolveu em um engavetamento com mais de 100 carros. Preso às ferragens, foi obrigado a ver uma criança morrer carbonizada em um veículo próximo.
Enquanto o homem quebrou o para-brisa para sair dali, a mulher paralisou de medo. No entanto, os dois conseguiram escapar. Passado o susto, ele, por muito tempo, evitou a estrada onde ocorreu o acidente. Ela, porém, nunca mais quis saber de dirigir. “Eventos traumáticos são experiências durante as quais você, pessoal e realisticamente, sente-se ameaçado de morte ou sofre lesões graves”, descreve Tracey, que é professora da Universidade Rutgers, nos EUA.
“Mas o trauma também pode surgir quando ouvimos algo chocante que aconteceu a outra pessoa, como a morte inesperada de um ente querido ou amigo próximo. Eventos traumáticos são abrangentes, incluem desde acidentes automobilísticos e abusos sexuais até desastres naturais e problemas de saúde”, completa.
Um estudo com 68,8 mil cidadãos de 24 países revelou, em 2017, que 70% deles já foram expostos a um ou mais traumas em algum momento da vida. A boa notícia é que um número reduzido de pessoas, algo em torno de 6 a 8%, vai desenvolver um transtorno mental por causa disso. Autor de Trauma — A Epidemia Invisível (Sextante), o psiquiatra americano Paul Conti divide o problema tratado em seu livro em três tipos: o agudo, o crônico e o vicário (do latim vicarius, ou seja, o que faz as vezes do outro).
O trauma agudo resulta de um evento específico de curta duração: um ataque terrorista, um acidente de carro ou até mesmo o diagnóstico de uma doença grave. O trauma crônico vem da exposição prolongada a situações prejudiciais à saúde ou a pessoas tóxicas: maus-tratos na infância, violência doméstica, preconceito racial… O vicário, por sua vez, é quando médicos, enfermeiros e socorristas, entre outros profissionais, são expostos aos traumas de seus pacientes que acabam, eles mesmos, traumatizados — o indivíduo não precisa ser vítima do trauma, basta testemunhá-lo.
“O trauma é como um vírus. Invisível e contagioso, deixa um rastro de gente morta ou sofrendo efeitos colaterais. Infelizmente, ainda não há estudos para criar uma espécie de vacina para ele”, expõe o psiquiatra. Tanto Conti quanto Tracey já sofreram traumas.
Um homem tentou invadir a casa da neurocientista na Califórnia enquanto ela se preparava para dormir. “Estava sozinha em casa e fiquei paralisada de medo”, relata. Já o irmão do médico se matou com a arma do pai quando tinha 20 anos. “Decidi me tornar psiquiatra porque queria fazer a diferença para pessoas como meu irmão”, conta. E fez!
Uma de suas pacientes mais famosas, a cantora e compositora Lady Gaga, assina o prefácio do livro. “Esse homem salvou a minha vida”, escreveu.
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O trauma enquanto doença
Era para ser um dia de aula como outro qualquer. Mas o 7 de abril de 2011 registrou o pior ataque a escolas do Brasil. Às 8h15 daquela quinta-feira, Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, um ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio, se apresentou como palestrante e entrou na unidade. Munido de dois revólveres, invadiu duas salas e matou 12 alunos, com idade entre 13 e 15 anos.
Thayane Tavares e Liliane Santos, hoje com 23 anos, são duas sobreviventes do Massacre de Realengo. Thayane levou quatro tiros e ficou paraplégica. Só não levou mais porque fingiu que estava morta. “Entrei na escola andando e saí de lá com uma lesão na medula. Tive que reaprender a viver”, afirma a estudante de direito que sonha em prestar concurso para juiz.
Liliane aproveitou o momento em que o atirador recarregou as armas para fugir. Encontrou abrigo na casa de uma vizinha. “Minha vida mudou completamente. Apesar de todos os medos, quero fazer valer o fato de ter recebido uma segunda chance”, garante a aluna de enfermagem, que ama ler e viajar.
“Traumas que ocorrem na infância tendem a ser mais graves. Afinal, a personalidade ainda está em formação, a sensação de impotência é maior e as estratégias de adaptação e resiliência não estão plenamente desenvolvidas”, observa o psiquiatra William Berger, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo o especialista, essas marcas no cérebro da criança aumentam a probabilidade de carregar sequelas psíquicas ou mesmo desenvolver o transtorno do estresse pós-traumático (TEPT). “Mas o diagnóstico de TEPT envolve necessariamente risco de morte, ferimento grave ou violência sexual”, esclarece.
Se o 11 de Setembro e o Massacre de Realengo ilustram o trauma agudo, rápido e temeroso, a pandemia de Covid-19 representa o trauma crônico, lento e estressante. Desde março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de pandemia, a população mundial é obrigada a conviver com incontáveis temores: de contrair o vírus, de ser intubado em uma UTI, de ficar desempregado, de perder amigos e familiares, de morrer… Ao todo, a Covid-19 já matou mais de 6,4 milhões de pessoas, 680 mil só no Brasil.
“Traumas são perfeitamente superáveis, e os da pandemia são um exemplo disso. Quando a ciência desenvolve uma vacina, fica mais fácil dominá-los. O que pode levar mais tempo para superar é a experiência de perder um ente querido e não poder se despedir direito dele”, avalia o psicanalista Joel Birman, autor de O Trauma na Pandemia do Coronavírus: Suas Dimensões Políticas, Sociais, Econômicas, Ecológicas, Culturais, Éticas e Científicas (Civilização Brasileira).
Agudos ou crônicos, traumas podem ser tratados e curados. Na maioria das vezes, os episódios de menor repercussão, como o fim de um relacionamento ou a perda de um emprego, tendem a desaparecer espontaneamente, sem a necessidade de intervenção, depois de alguns dias ou semanas.
Já os traumas de maior gravidade, como aqueles que envolvem violência física, sexual ou psicológica, requerem cuidados profissionais. Se não forem abordados adequadamente, podem perdurar por décadas, deixar marcas profundas e derrubar a qualidade de vida.
“Durante cerca de um mês, a pessoa ainda pode viver em estado constante de alerta, a chamada hipervigilância, como se algo muito ruim estivesse para acontecer. No entanto, se esse e outros sintomas, como flashbacks intensos e pesadelos recorrentes, persistirem por mais tempo, é sinal de que o problema se cronificou”, alerta a psicóloga Adriana Mozzambani, coordenadora de neuropsicologia do Programa de Atendimento a Violência e Estresse Pós-Traumático da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Esse estado de alerta constante é perigoso porque adoece o corpo e pode levar a um colapso mental.”
Segundo estimativas, homens tendem a sofrer mais experiências traumáticas. No entanto, o número de mulheres diagnosticadas com TEPT é até três vezes maior.
Adriana Maluendas, vítima do 11 de Setembro, é uma delas. Durante muito tempo, onde quer que estivesse, sentia o coração disparar, a boca ficar seca e as mãos suarem frio só de ouvir sirenes. À noite, não conseguia dormir se estivesse de pijama: tinha pavor de que outra tragédia daquelas acontecesse se não estivesse pronta para sair correndo. Por essa razão, ia pra cama de tênis e moletom. “Até hoje, não tenho palavras para descrever o que vivi naquele dia…”, desabafa.
Vida depois do trauma
Nanette Blitz Konig foi uma das convidadas da festa de aniversário em que Anne Frank (1929-1945), então com 13 anos, ganhou seu famoso diário com capa de pano xadrez. As duas amigas estudaram juntas no Liceu Judaico, em Amsterdã, na Holanda. E, por infelicidade, voltaram a se encontrar, anos depois, através de uma cerca de arame farpado, no campo de concentração de Bergen-Belsen, a 65 quilômetros de Hannover, na Alemanha. “Anne estava careca e debilitada. Praticamente uma morta-viva”, recorda Nanette, de 93 anos, 69 deles vivendo no Brasil.
A autora de Eu Sobrevivi ao Holocausto — O Comovente Relato de uma das Últimas Amigas Vivas de Anne Frank (Universo dos Livros) se dedica, desde 1999, a visitar escolas, bibliotecas e universidades para compartilhar sua história. “Cerca de 90% das pessoas com quem converso nunca ouviram falar do Holocausto. É por isso que faço o que faço. Se os sobreviventes se calarem, é possível que aconteça tudo de novo. Se depender de mim, o mundo jamais vai se esquecer daquelas atrocidades”, disse em 2018.
Episódios traumáticos, como o vivido por Nanette durante a Segunda Guerra, não podem ser apagados da memória, como sugeriu o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, estrelado por Jim Carrey e Kate Winslet. Não podem e não devem, ressalta a neurocientista Tracey Shors.
“Não há como deletar memórias. Mesmo se houvesse, não recomendaria. A maior parte delas é útil porque nos ajuda a aprender com o passado e nos prepara para o que pode acontecer no futuro”, justifica. Ela própria, depois de ter sua casa quase invadida, passou a tomar uma série de precauções: a residência agora conta com um cachorro grande que rosna ao menor sinal de barulho e um sofisticado sistema de segurança.
Nas ruas, a especialista fica atenta quando sai à noite, evita lugares escuros, perigosos e desertos, e sempre olha ao redor para ter certeza de que não está sendo seguida.
Adriana, Paul, Tracey, Thayane, Liliane, Nanette… Todos eles confirmam o que a ciência já descobriu: sim, há vida depois do trauma. Muitas vezes, a superação envolve apoio médico e psicológico, com terapia e, eventualmente, prescrição de medicamentos como antidepressivos. E, em alguns casos, as pessoas conseguem tirar lições dos males que viveram e desenvolvem o que os estudiosos chamam de crescimento pós-traumático.
“Toda experiência, por pior que seja, pode nos trazer algo de bom”, sintetiza o psiquiatra William Berger. “Depois de superarem eventos potencialmente traumáticos, certos indivíduos repensam sua maneira de viver, dedicam mais tempo ao lazer e à família e passam a desfrutar de melhor qualidade de vida”, descreve o docente da UFRJ.
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O que não mata fortalece
O conceito de crescimento pós-traumático foi desenvolvido, ainda nos anos 1990, por dois pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte, nos EUA, os psicólogos Richard Tedeschi e Lawrence Calhoun. Em poucas palavras, pode ser descrito como uma mudança psicológica positiva que pode ocorrer depois de um período de estresse ou adversidade intensa. Desde então, o fenômeno está sendo estudado sobretudo entre ex-combatentes de guerra, sobreviventes de desastres naturais e testemunhas de ataques terroristas.
“Há algum tempo, pensava-se que o crescimento pós-traumático e o estresse pós-traumático seriam os dois lados de uma mesma moeda. Ou seja, após um evento estressor, o indivíduo poderia crescer ou adoecer. Mas não é assim que funciona”, revela o psicólogo Christian Kristensen. “Pessoas que tendem a interpretar o evento estressor como algo definidor de seu futuro apresentam mais risco de desenvolver TEPT. Por outro lado, quem vê o episódio como um ponto de inflexão em sua vida tem chances aumentadas para o crescimento pós-traumático”, diferencia o professor da PUC-RS.
Adriana Maluendas, por incrível que pareça, escolheu morar na cidade onde viveu seu pior pesadelo, Nova York. Fez terapia, tomou remédios e escreveu um livro, o autobiográfico Além das Explosões — Como o Ataque Terrorista ao WTC Mudou Minha Vida para Sempre (Editora Viena).
Hoje, admite que muitos de seus traumas ficaram para trás. “Se tivesse que dizer algumas palavras a quem está passando por uma experiência estressante ou desafiadora, diria: ‘Nunca desista de você! A vida é algo mágico que não pode ser desperdiçado’.”
Como superar um trauma? Publicado primeiro em https://saude.abril.com.br
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